sábado, 24 de agosto de 2013

EU SOU SARTANA: A FERA CARIOCA PARTE 3

A FERA foi solta nos cinemas cariocas em fevereiro de 1978, em seis salas no município do Rio (Pathé, Roma, Paratodos, Bruni Tijuca, Bruni Copacabana e Irajá) e no Cine Glória, de São João de Meriti. A estreia ocorreu mais de um ano e meio após a exibição na Itália - o visto de censura italiano data de julho de 1976. Pode-se supor que o motivo do atraso tenha sido burocrático: como o filme foi processado em laboratório italiano, a obtenção do famigerado Certificado de Produto Brasileiro (CPB) deve ter sido problemática.

A demora não ajudou e o filme passou batido nas bilheterias. Na segunda semana de exibição, o circuito já havia sido reduzido para apenas três salas. 

Só reapareceria em setembro de 1982, quando estreou na televisão brasileira na "Sessão Proibida", da TVS (atual SBT), no horário ingrato das 23h.

A recepção crítica, como esperado, não foi diferente. Italianos (ver a primeira parte do artigo) e brasileiros desceram a lenha:

Jornal do Brasil, 24 de fevereiro de 1978

Abre parêntesis.

A irritação do crítico com a concessão do CPB (após quase dois anos de espera!) a uma "coprodução desse nível" - que também contou com atores e técnicos brasileiros -, enquanto IRACEMA, UMA TRANSA AMAZÔNICA (Brasil, 1975), de Orlando Senna e Jorge Bodanzky (com zê), permanecia "na fila" é equivocada. IRACEMA, que foi processado em laboratório no exterior, ficou quatro anos na prateleira pois foi vítima da feroz censura política do então Ministro da Justiça, Armando Falcão - famoso pelo "democrático" bordão "nada a declarar". A burocracia - real - do certificado foi um pretexto para engavetar um filme que mostrava um Brasil que o regime militar queria esconder. São casos bastante distintos. E independentes.

Fecha parêntesis.


DESAFIANDO CRÍTICOS FERAS E TEMPESTADES!

URSUS (idem, 1961), de Carlo Campogalliani, com roteiro de Carnimeo. Dist. Art Films.

Franco & Ciccio são OS DOIS FILHOS DE RINGO
O desprezo unânime dos críticos não era novidade para o diretor Giuliano Carnimeo (1932 - ), um italiano de Bari especializado em gêneros esculhambados pela 'intelligentsia' como westerns e comédias eróticas. Tal como a maioria dos artífices do cinema popular local do pós-guerra, Carnimeo aprendeu o ofício nos sets de filmagem, como assistente de direção e roteirista de cineastas veteranos. Trabalhou com Carlo Campogalliani - no 'peplum' URSUS (idem, Itália/Espanha, 1961) -, Camillo Mastrocinque - ROMANCE NO INVERNO (Vacanze d'inverno, Itália/França, 1959) - e, principalmente, com Giorgio Simonelli, em veículos para a dupla de comediantes Franco Franchi e Ciccio Ingrassia - a versão peninsular de Jerry Lewis e Dean Martin - como OS DOIS MAFIOSOS (I due mafiosi, Itália/Espanha, 1964) e OS DOIS FILHOS DE RINGO (I due figli di Ringo, Itália, 1966). Quando Hollywood tomou o Tibre, de olho na boa estrutura e nos baixos custos de produção, Carnimeo aproveitou a oportunidade: dirigiu a versão italiana do primeiro filme europeu do norte-americano George Sherman, SUAVE É O AMOR (Panic button... operazione fisco!, Itália/EUA, 1963), com Jayne Mansfield e Maurice Chevalier.


A adoção de pseudônimos anglicizados por parte de diretores, técnicos e atores estrangeiros era uma lei não escrita na Itália dos anos 1960. Visando "americanizar" seus produtos, Sergio Leone virou "Bob Robertson", Antonio Margheriti renasceu como "Anthony M. Dawson" e, em casos mais esdrúxulos, o lendário cenógrafo Franco Fumagalli foi rebatizado, literalmente, como "Frank Smokecocks" em O DIABÓLICO DR. HICHCOCK (L'orribile segreto del Dr. Hichcock, Itália, 1962), de Riccardo Freda. Assim surgiu "Anthony Ascott", nome com que assinaria seus melhores trabalhos e acompanharia Carnimeo até o fim de sua carreira.
 
Jesus Cristo FACE A FACE COM O DIABO num filme de Anthony Ascott e Hugo Fregonese. Dist. River Filmes

A carreira de diretor deslancharia a partir de 1968, com dois westerns: o excelente FACE A FACE COM O DIABO (Joe... Cercati un posto per morire!/Find a place to die, Itália, 1968) - co-dirigido pelo argentino Hugo Fregonese e estrelado pelo ex-Jesus Cristo Jeffrey Hunter, visivelmente debilitado pelo excesso de goró - e o 'mezzo giallo' BANDOLEIROS VIOLENTOS EM FÚRIA (Il momento di uccidere, Itália/Alemanha, 1968), terceira parceria com seu ator fetiche, o uruguaio George Hilton.


No ano seguinte, um pistoleiro vestido de negro da cabeça aos pés cruzaria o caminho de Ascott. E o sucesso bateria à sua porta em grande estilo.

Gianni Garko é SARTANA

Corte rápido.

No final de 1966, a dupla Alberto Cardone e Mario Siciliano lançava seu segundo western bíblico, o excepcional JOHNNY TEXAS (1000 dollari sul nero/Blood at sundown, Itália/Alemanha, 1966), que praticamente repetia equipe e elenco do filme anterior, SETE DÓLARES ENSANGUENTADOS (7 dollari sul rosso, Itália/Espanha, 1966). A estrela da companhia era novamente o astro ítalo-brasileiro Antonio de Teffé, o "Anthony Steffen".

'Fotobusta' italiana de JOHNNY TEXAS. Na TV brasileira, o filme foi exibido como MIL DÓLARES NO PRETO

O roteiro, escrito a quatro mãos por Ernesto Gastaldi e Vittorio Salerno, reinventa a história de Caim e Abel no Velho Oeste. No filme, o personagem de Teffé volta à cidade natal após cumprir pena por um crime cometido por seu irmão, o sádico "el general" Sartana (Gianni Garko, creditado como John Garko). Obcecado pela mãe e com delírios de divindade, Sartana habita um templo asteca em pleno deserto e não perde a chance de chutar mulheres e inválidos. Garko, inspirando-se no gângster de Richard Widmark em O BEIJO DA MORTE (Kiss of death, EUA, 1947), de Henry Hathaway, rouba cada uma das cenas em que aparece. Em entrevista à revista norte-americana "Video Watchdog", Gastaldi revelou que o nome do personagem surgiu quando ele e Salerno trocaram "uma das letras do nome do general mexicano Antonio López de Santa Anna", o polêmico "Napoleão mexicano".

Santa Anna, quem diria, acabou em Cinecittà

O sucesso foi estrondoso, especialmente na Alemanha.
 
O produtor italiano Aldo Addobbati foi rápido no gatilho e procurou Garko para protagonizar um novo western. O roteiro inicialmente proposto - mais uma história de vingança - não agradou e foi recusado pelo ator,  que queria exercitar sua veia cômica. Propôs uma troca: faria o filme caso pudesse escolher o roteiro. Garko relembrou sua versão da história à revista italiana "Nocturno":

"Mal assinei o contrato, Addobbati me mostrou um cartaz no qual se lia em letras garrafais: 'John Garko in SARTANA'. Não entendi. 'Mas o que é isso?', perguntei, 'Eu não fiz esse filme!' E ele: 'O personagem do general Sartana em JOHNNY TEXAS agradou tanto aos alemães que eles decidiram mudar o título do filme'. Eu não fazia ideia do sucesso na Alemanha. Aldo disse: 'O filme que vamos fazer vai se chamar SARTANA, pois eu já vendi o projeto aos alemães com esse título!' Bem, se eu soubesse disso antes de assinar o maldito contrato, teria pedido mais dinheiro, mas fiquei feliz em ter a palavra final no roteiro".

Cartaz francês de JOHNNY TEXAS

Garko trouxe um amigo, Renato Izzo, para trabalhar no tratamento escrito por Fabio Piccioni, Luigi De Santis e Adolfo Cagnacci, que foi bastante modificado. A ele se juntou o cineasta Gianfranco Parolini, o "Frank Kramer", um veterano de aventuras halterofilísticas como SANSÃO (Sansone, Itália/França, 1961) e OS DEZ GLADIADORES (I dieci gladiatori, Itália, 1963), e da série de espionagem KOMMISSAR X, que substituiu o diretor original, Guido Zurli, que brigou com Addobbati.


Nascia o personagem que se tornaria um ícone do western spaghetti: Sartana, o caçador de recompensas. Vestido de negro, chapéu sobre os olhos, cigarrilha entre os lábios, capa preta forrada de vermelho à la Mandrake e com um baralho e uma pistola Derringer de quatro canos escondidos na manga, Sartana era o James Bond do Velho Oeste.


SE ENCONTRAR SARTANA, REZE PELA SUA MORTE (...Se incontri Sartana, prega per la tua morte, Itália/Alemanha/França, 1968) foi lançado na Itália em 1968, no verão escaldante de agosto, quando Roma vira uma cidade fantasma. A estratégia pouco convencional deu certo: barato, o filme virou um fenômeno de bilheteria. O êxito se repetiu no resto da Europa, na Ásia e Oriente Médio. Garko foi elevado ao patamar de 'superstar'. Seu cachê por filme aumentou dez vezes.

Cartaz italiano do filme de Parolini
 
O sucesso gerou um processo contra Addobbati por parte de Mario Siciliano, que reivindicava os direitos sobre o nome do personagem. Ficou a ver navios.

A estreia no Rio ocorreu em março de 1970, com distribuição da River Filmes num circuito encabeçado por duas salas populares - cines Plaza (Passeio) e o gigantesco Olinda (Tijuca) -, além do Hermida (Bangu), Mascote (Méier),  Ricamar (Copacabana) e Mello (Penha Circular).

Sartana ficou sem cavalo e chegou atrasado ao Rio em março de 1970

"Fade".

O retorno do pistoleiro às telas era uma questão de tempo. Addobbati iniciou rapidamente os preparativos para uma sequência. A novidade foi a ausência de Parolini, que brigou com o produtor - a quem chamaria mais tarde de "um cafona ignorante". Levou consigo o roteirista Renato Izzo e assinou com Alberto Grimaldi, responsável pelos filmes de Sergio Leone, para dirigir SABATA, O HOMEM QUE VEIO PARA MATAR (Ehi amico... c'è Sabata, hai chiuso!, Itália, 1969), com Lee Van Cleef no papel título.

Saíam Izzo e Parolini, entravam Tito Carpi e Anthony Ascott.


CONTINUA...




quinta-feira, 15 de agosto de 2013

TRINITY, CARAMBOLA E A FERA CARIOCA: PARTE 2

Fora o desejo da Sra. Salvatore Argento em voltar ao Rio, pouco se sabe sobre o nascimento da FERA.

A parte brasileira da produção ficou a cargo do ex-ator português Roberto Acácio, falecido em 1994. Acácio foi responsável por chanchadas de Watson Macedo (O PETRÓLEO É NOSSO, CARNAVAL EM MARTE) e pelos primeiros filmes brasileiros do argentino Carlos Hugo Christensen (MÃOS SANGRENTAS e LEONORA DOS SETE MARES). A FERA CARIOCA foi a segunda empreitada da Cinemática, sua nova produtora. A primeira havia sido OS PRIMEIROS MOMENTOS (1973), de Pedro Camargo.

'Release' brasileiro do filme de Enzo Castellari

O roteiro é creditado ao prolífico Tito Carpi, Leila Buongiorno e ao brasileiro Luiz Antonio Piá. 

Carpi, com quase cem filmes em seu currículo, era amigo e parceiro habitual do diretor Marino Girolami e de seu filho, o também cineasta Enzo G. Castellari. Seus créditos incluem POUCOS DÓLARES PARA DJANGO, VOU.. MATO... E VOLTO, MOMENTOS DE DESESPERO e INFERNO NO OESTE.

Piá, veterano diretor de TV - atualmente no SBT -, dirigiria SEXO E VIOLÊNCIA E BÚZIOS (1978) e O HOMEM DE SEIS MILHÕES DE CRUZEIROS CONTRA AS PANTERAS (1978), 'hit' de bilheteria com o comediante Costinha como um homem biônico às voltas com o sequestro do jogador de futebol Marinho, da seleção brasileira.

Costinha, o Lee Majors tupiniquim

Sem o filme à mão, o jeito é recorrer ao Guia de Filmes da Embrafilme, que trazia - no número 73/75 e 76/78 (filmes com estreia no Brasil durante o ano de 1978) - a mais completa sinopse de A FERA CARIOCA:

"Aventura policial humorística. Carlo (Michael Coby), boa vida italiano, embarca clandestinamente para o Rio, visando a receber herança deixada por seu pai Gennarino, ex-pistoleiro de Rosalindo Y Guana (Cesar Romero), rico chefão aposentado da máfia sul-americana. No navio, conhece Augusto (Augusto Alves), também clandestino, que leva um contrabando para seu tio Tigre (Aldo Maccione), pobre e sonhador marginal brasileiro. No Rio, os três aliam-se para conseguir a fita gravada que contém o testamento e se defender de Y Guana, também interessado em obter a herança, uma pistola cravejada de pedras preciosas, outrora pertencente ao mafioso. Após contratar um pistoleiro de Dallas, aprisioná-los numa fábrica de conservas para cães, de sua propriedade, persegui-los numa escola de samba e segui-los ao Rio Grande do Sul, Y Guana, acompanhado de seus capangas, defronta-se com Carlo, Tigre e Augusto numa penitenciária cujo diretor mantinha a pistola num aquário cheio de piranhas. Desencadeia-se tremenda luta, que termina com a prisão de Y Guana e a apreensão da pistola pela polícia. Desiludidos, os três malandros retornam ao Rio, iniciando nova viagem em busca de outra mirabolante fortuna: um bilhete de loteria deixado em roupa dada a um camponês, e que tinha sido premiado".

Seria curioso ver o gorducho Maccione como carioca - vestindo um terno listrado, daí o apelido "Tigre" - e o ex-Cisco Kid e ex-Coringa Cesar Romero como um traficante latino, além das participações de Grande Otelo e Milton Gonçalves (como um macumbeiro).

Nas mãos de um Zalman King, viraria ORQUÍDEA SELVAGEM.

A sequência de Lo chiamavano Trinità batendo recordes de bilheteria no Rio

Legítimo produto italiano do final dos anos 1970, FERA é, muito provavelmente, um dos muitos filmes inspirados no estrondoso e inesperado sucesso de CHAMAM-ME TRINITY (Lo chiamavano Trinità..., Itália, 1970) e TRINITY AINDA É MEU NOME (... continuavano a chiamarlo Trinità, Itália, 1971).

Abre parêntesis.

O díptico cômico de Enzo Barboni deu sobrevida ao então moribundo western spaghetti nas bilheterias. Em pouco tempo, o mercado foi invadido por sósias da dupla Mario Girotti e Bud Spencer - mais conhecidos pelos pseudônimos "Terence Hill" e "Bud Spencer", respectivamente. Os dois fariam mais onze filmes juntos, como protagonistas, após TRINITY AINDA É MEU NOME. Tal como a FERA, vieram ao Rio de Janeiro, onde rodaram EU, VOCÊ, ELE E OS OUTROS (Non c'è due senza quattro, Itália, 1984) e gravaram uma participação no programa de TV de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias.

Fecha parêntesis.

Cartaz brasileiro de Lo chiamavano Trinità (1970), de Enzo Barboni ("E.B. Clucher"). Coleção Fábio Vellozo

A ideia de contrafação é reforçada pelo crítico anônimo, curto e grosso da publicação do Centro Cattolico Cinematografico, "Segnalazioni cinematografiche", LXXXII (1977): "Commedia all'italiana sem novidades derivada do sucesso da dupla Hill-Spencer"; e pela escolha do protagonista, o italiano Antonio Cantafora, na época famoso como "Michael Coby".

Cantafora, um calabrês louro e boa pinta, "estourou" em 1974, ao lado do gordo Paul L. Smith, no modesto CARAMBOLA (Itália, 1974), de Ferdinando Baldi, imitação descarada dos "blockbusters" de Barboni.


 Tornaram-se os clones de maior sucesso de Trinità (Hill) e Bambino (Spencer).

Cartaz brasileiro de Carambola (1974), de Ferdinando Baldi. Coleção Fábio Vellozo
 
Fariam mais quatro filmes juntos: uma sequência de CARAMBOLA, TRINITY E CARAMBOLA - A DUPLA INVENCÍVEL (Carambola, filotto... tutti in buca, Itália, 1975), também de Baldi;
TRINITY E CARAMBOLA NA TRILHA DA AVENTURA (Noi non siamo angeli, Itália, 1975), de Gianfranco Parolini ("Frank Kramer", o criador das séries Sartana e Sabata), que não é Trinity nem Carambola;

Hill e Spencer? Não, Cantafora (ao volante) e Smith

e outros dois filmes como a dupla "Simone e Matteo": CONTINUO ME CHAMANDO CARAMBOLA (Simone e Matteo: Un gioco da ragazzi, Itália/Espanha, 1975) e TRINITY E CARAMBOLA, OS PARCEIROS DO DIABO (Il vangelo secondo Simone e Matteo, Itália, 1976).

Estreia no Rio do primeiro filme da dupla "Simone e Matteo"...

...e de sua sequência, também dirigida por Giuliano Carnimeo

As aventuras de Simone e Matteo - ou "Toby" e "Butch", na versão em inglês - foram dirigidas por Giuliano Carnimeo, o diretor de A FERA CARIOCA.


Corte rápido.

Smith, falecido em 2012, é mais lembrado como o Brutus do POPEYE (1980), de Robert Altman, e o carcereiro de O EXPRESSO DA MEIA NOITE (1978), de Alan Parker. Não bastasse a semelhança física com Bud Spencer, ambos 'soavam' idênticos: Smith foi propositadamente dublado em italiano pelo ator Glauco Onorato, o mesmo que emprestava a voz a Spencer. O curioso é que, como Onorato também atuava nos CARAMBOLA dirigidos por Baldi, ele próprio teve de ser dublado por outro ator, para que dois personagens do mesmo filme não falassem com a mesma voz!

Quanto a Coby e Maccione, ambos voltariam ao Rio a trabalho.

Em 1982, Cantafora podia ser visto com Marcello Mastroianni na badalação da noite carioca nos intervalos de filmagem de GABRIELA (1983), de Bruno Barreto, em que interpretou Tonico Bastos.

Maccione, por sua vez, estrelaria NO RIO VALE TUDO (Si tu vas à Rio... tu meurs, 1987, França/Brasil), de Philippe Clair, ao lado de uma Roberta Close pré-cirurgia.



"Fade".

FINE SECONDO TEMPO

domingo, 11 de agosto de 2013

ARGENTO, OS LUXARDO E A FERA CARIOCA: PARTE 1

Quando proseei com o cineasta, pesquisador e 'buona persona' italiano Luigi Cozzi - em Roma, na loja 'Profondo Rosso', e no Rio, durante o festival 'Fantaspoa no Rio' (maio de 2013) -, não perdi a oportunidade de perguntar sobre A FERA CARIOCA (Carioca Tigre, Itália/Brasil, 1976).

 A FERA CARIOCA

O filme é uma de minhas obsessões inexplicáveis desde a década de 1980.

Abre parêntesis:

Assisti um trecho de A FERA CARIOCA na TV, à noite, por volta de 1983.

A FERA CARIOCA no 'Sala especial', da TV Record, em 1984

Desde então, nunca mais consegui rever o filme. 

Não vi reprise na TV, não saiu em VHS no Brasil nem em DVD na Itália. Não existe nenhuma resenha - "user review" - no IMDb (Internet Movie Database). Até o site da Cinemateca Brasileira lista o filme apenas como CARIOCA TIGRE (o título italiano) e credita - erradamente - Lima Duarte e Ursula Andress no elenco.

'Locandina' italiana

Fecha parêntesis.

Cozzi é parceiro de trabalho do 'maestro' Dario Argento desde QUATRO MOSCAS SOBRE VELUDO CINZA (4 mosche di velluto grigio, Itália/França, 1971), no qual foi coautor do argumento e assistente de direção - 'ganhando a vaga' do titular da posição, Roberto Pariante. O filme foi uma coprodução da Paramount com a Seda Spettacoli, companhia de Salvatore Argento e seu filho, Dario, criada em 1969 (o nome SEDA é a junção das iniciais dos nomes de ambos, Salvatore E DArio). 

Cinco anos mais tarde, a Seda produziria, em parceria com a brasileira Cinemática Produções - do português radicado no Brasil Roberto Acácio -, A FERA CARIOCA, parcialmente rodado no Rio de Janeiro.

Apesar da presença do popular comediante italiano Aldo Maccione no elenco e da trilha sonora de Chico Buarque, Vinícius de Moraes e Toquinho, o filme foi um fiasco de público e crítica, tanto na Itália como no Brasil (o que pode até explicar, mas não justifica a "invisibilidade" da 'fera').

Seria a penúltima produção da companhia: o canto do cisne foi SUSPIRIA (Itália, 1977).

O que teria trazido Salvatore e sua trupe ao Rio?

Abre parêntesis [2]:

Gianna Maria Canale. Studio Luxardo
A mãe de Dario, a fotógrafa de moda Elda Luxardo, foi responsável, ao lado do irmão, Elio, por - como define o próprio 'site' da Galleria Luxardo - "marcar uma época" na fotografia italiana. Nos anos 1930, no estúdio da via del Tritone, 197, por onde passavam intelectuais, artistas e desportistas, os Luxardo revolucionaram a fotografia moderna, trabalhando a luz com perfeição e recriando o "mito da beleza, o culto ao corpo". Nem a guerra e a devastação impediram o sucesso da família: no pós-guerra, com o advento dos concursos de Miss Itália, os irmãos foram responsáveis pelos primeiros "glamour shots" de jovens divas como Gina Lollobrigida e Sophia Loren. Tal como seus fotografados, ficaram famosos e ricos. Dizia-se que não havia celebridade que não quisesse ser clicada pelos Luxardo. Colaboraram com as principais revistas de decoração, moda e cinema da Itália. Amigos da aristocracia, viveram intensamente a "dolce vita" dos anos 1960.

Nu. Elio Luxardo
Claudia Cardinale. Studio Luxardo
Vittorio De Sica. Studio Luxardo
Sophia Loren. Elio Luxardo
Dina Sassoli. Elda Luxardo

Mas Elda gostava mesmo é de passar férias no Rio de Janeiro.

Parêntesis dentro do parêntesis:

No início do século 20,  o jovem fotógrafo Alfredo Luxardo foi um dos muitos italianos que vieram tentar a sorte no Brasil. Junto com a esposa, Margherita, "Aldo" sai de Pisa (Itália) e fixa residência em Sorocaba (SP), mas o ofício o leva aos mais remotos cantos do país. No Brasil, nascem os quatro filhos do casal: Elio, Aurora, Elda e Aldo. Segundo a  Enciclopédia Sorocabana, Alfredo Luxardo "era um fotógrafo italiano que foi obrigado a emigrar ao Brasil à procura de melhor sorte, e havia se especializado na reprodução e retoque de imagens de falecidos, para colocá-las nas lápides funerárias". 

Ainda segundo a Enciclopédia, o primogênito Elio "trabalhou para o governo brasileiro como operador cinematográfico e documentarista esportivo" antes do regresso à Itália, em 1932.

Artista esculpindo busto de Mussolini (1930). Elio Luxardo.
Mais sobre a vida de Elio Luxardo e seu trabalho no serviço de propaganda fascista - envolvimento que o levou à prisão no campo de concentração de Bresso, pouco antes do fim da guerra - na Wikipédia italiana.

Líbero Luxardo
Outro sorocabano ilustre, o pioneiro cineasta Líbero Luxardo, filho do fotógrafo italiano Julio Luxardo e codiretor do documentário ALMA DO BRASIL (RETIRADA DE LAGUNA) (1930/1931), de duas co-produções com a Cinédia, de Adhemar Gonzaga, CAÇANDO FERAS (1936) e ARUANÃ (1938) - com exteriores rodados no Rio das Mortes, em meio aos índios Javaés - e do primeiro filme longa paraense, UM DIA QUALQUER (1962), é, supostamente, primo de Elda Luxardo, como afirma a pesquisadora Maria José Mesquita. Numa entrevista quando de sua passagem pelo Rio de Janeiro, Argento falou das histórias que a mãe contava sobre o Marechal Rondon, o militar e sertanista brasileiro. 


Set de MARAJÓ, BARREIRA DO MAR (1964): Líbero é o de chapéu de palha, à direita
Set de UM DIA QUALQUER, o primeiro longa paraense

Infelizmente, não tive tempo suficiente com o 'maestro' durante sua passagem pelo Rio em 2011 para esclarecer tantos mistérios. Só deu mesmo para pegar os autógrafos nos cartazes.

Eu e Argento (2011)
Fim do parêntesis dentro do parêntesis.

Cozzi contou que Elda não sossegou enquanto não convenceu o marido, Salvatore Argento, a fazer um filme no Rio de Janeiro.

Poderiam unir o útil ao agradável: trabalhariam e desfrutariam do Rio.

Nascia A FERA CARIOCA.

Fecha parêntesis [2].

Fim da PARTE 1.




sábado, 10 de agosto de 2013

COMO ERA GOSTOSO O MEU CHINÊS: AS SACANAGENS DE FU MANCHU E JESS FRANCO NO RIO BABILÔNIA

A mais diabólica personificação do perigo amarelo!

O Dr. Fu Manchu, o gênio do mal criado pelo escritor inglês Sax Rohmer – exótico pseudônimo adotado por Arthur Henry Sarsfield Ward – fez uma rápida transição das páginas para as telas. A estreia cinematográfica oficial do legítimo representante dos medos e paranoias de toda uma geração de ocidentais – um amálgama de vários estereótipos atribuídos especialmente aos chineses – data de 1923, quando foi interpretado por Harry Agar-Lyons em dois seriados mudos, dez anos após o lançamento de sua primeira aventura na Inglaterra, 'The mistery of Dr. Fu Manchu' (ou 'The insidious Dr. Fu Manchu', nos EUA), em 1913.

Apesar da notável diferença com a descrição física do personagem (“um homem alto, magro e felino, de ombros elevados, testa ampla como a de Shakespeare, rosto satânico, crânio raspado, olhos oblíquos, magnéticos, de pupilas verdadeiramente verde-gato”), o gorducho Warner Oland – o mais popular Charlie Chan do cinema – herdou o personagem de Lyons, estrelando três filmes para a Paramount e inaugurando a fase sonora do vilão.


Em seguida, a MGM investiu pesado em A MÁSCARA DE FU MANCHU (The mask of Fu Manchu, 1932), trazendo Boris Karloff na pele do temível doutor. Na década de 1940, foi a vez de Henry Brandon, que não fez feio no excelente seriado da Republic Pictures, OS TAMBORES DE FU MANCHU (The drums of Fu Manchu, 1940) e do espanhol Manuel Requena, astro do obscuro EL OTRO FU-MAN-CHÚ, dirigido por Ramón Barreiro em 1946. 


Após a incursão espanhola, o personagem foi esquecido pelos produtores e apenas duas versões televisivas de Fu Manchu aparecem nos anos 1950: a primeira com John Carradine – em apenas um episódio piloto não aproveitado pela emissora NBC, THE ZAYAT KISS – e a segunda, de baixíssimo orçamento, com o caricato Glen Gordon no papel do vilão.

Fu Manchu só voltaria às telas de cinema quase vinte anos depois, quando o produtor Harry Alan Towers (1920-2009) – até então responsável por alguns filmes e seriados para a TV inglesa – ressuscita o gênio do crime em grande estilo. Towers, um fã confesso de Rohmer e de literatura 'pulp', observando o sucesso estrondoso da série 007 e seus exóticos vilões, decide investir pesado – algo atípico para sua carreira – numa nova aventura do perigo amarelo. Além da campanha publicitária agressiva, Towers contrata profissionais competentes, como o talentoso artesão Don Sharp (de O BEIJO DO VAMPIRO, produção da Hammer) e um elenco de peso – que incluía Nigel Green e Howard Marion-Crawford, além de atores alemães veteranos dos 'krimis' como Karin Dor e Joachim Fuchsberger – capitaneado por Christopher Lee no papel de Fu Manchu.

O resultado, A FACE DE FU MANCHU (The face of Fu Manchu, 1965), uma mistura de Rohmer e Ian Fleming, escrito por “Peter Welbeck” (pseudônimo tradicional do próprio Towers), mostrou-se lucrativo o suficiente para dar origem a quatro sequências. A primeira, AS 13 NOIVAS DE FU MANCHU (The brides of Fu Manchu, 1966), também dirigida por Sharp, traz Douglas Wilmer substituindo Green no papel do arquiinimigo de Fu Manchu, o Dr. Nayland Smith. Wilmer repetiria o papel no terceiro filme da série, A FILHA DIABÓLICA DE FU MANCHU (The vengeance of Fu Manchu, 1967), de Jeremy Summers.


Os tempos mudavam e, na efervescência do final dos anos 1960, a série já dava sinais de cansaço. O retorno nas bilheterias diminuía e Towers não dispunha mais de orçamentos tão generosos quanto o de A FACE DE FU MANCHU. Com menos tempo e dinheiro para filmar, que outro diretor se adequaria tão bem quanto o espanhol Jesús Franco Manera (1930-2013), mais conhecido como "Jess Franco"?

Em Franco, Towers encontra seu parceiro ideal: gourmet, músico de jazz e bon vivant, o espanhol é o autor de centenas de filmes – dentre os quais dezenas de versões alternativas de um mesmo filme, o que torna a compilação de sua filmografia uma missão quase impossível. Os resultados iam do puro lixo a obras primas incontestáveis. Com sua rapidez e economia, Franco surpreendia produtores – como o suíço Erwin C. Dietrich, com quem manteve uma duradoura parceria – ao ser contratado para fazer um filme e entregar dois, usando a mesma equipe e locações, sem qualquer tipo de acréscimo no orçamento ou no cronograma de filmagens!

A parceria Towers-Franco dá origem ao quarto filme da série, FU MANCHU E O BEIJO DA MORTE (1968), que, para desgosto de Lee, baseia-se novamente num roteiro original do próprio Towers, consideravelmente distante dos textos originais de Rohmer. Nele, os obstinados Fu Manchu (Lee) e sua filha Lin Tang (Tsai Chin, presente desde o primeiro filme da série de Towers) montam sua base de operações em uma caverna na América do Sul, de onde pretendem, mais uma vez, dominar o mundo. O plano é engenhoso: dez belas mulheres são sequestradas e infectadas com o poderoso veneno da “cobra negra”, sendo posteriormente enviadas para diversas capitais para administrar o “beijo da morte” em personalidades de renome mundial. Um dos escolhidos é o incansável arquiinimigo de Fu, Nayland Smith (Richard Greene, substituindo Douglas Wilmer), que após ser beijado por Celeste (Loni Von Friedl), percebe que sua única chance de cura é localizar o esconderijo de seu velho rival. Cego e debilitado, Smith e seu fiel assistente Dr. Petrie (Howard Marion Crawford, em sua quarta aparição na série) são ajudados na difícil missão pela enfermeira Ursula (Maria Rohm, esposa de Towers) e pelo arqueólogo Carl Jansen (Götz George) e enfrentam os inúmeros perigos das florestas sul americanas, como o bando de Sancho Lopez (o espanhol Ricardo Palacios, usando chapéu de cangaceiro).

A brasileira Olivia Pineschi (à esquerda) e o espanhol Palacios (de cangaceiro) num lobby card norte-americano de FU MANCHU E O BEIJO DA MORTE

Certamente o mais fraco exemplar da série, FU MANCHU E O BEIJO DA MORTE mostra um Franco contido e discreto, muito distante de seus trabalhos mais autorais. Ainda que a trama permitisse que Franco, um fã confesso da obra de Rohmer, chafurdasse em suas obsessões com sexo, sadismo e morte – a ideia do exército de garotas hipnotizadas distribuindo beijos da morte pelo mundo remete a outros filmes do espanhol -, o resultado é curiosamente impessoal.

Os fãs de Franco sabem que o diretor nunca foi afeito a sequências de ação e as deste filme, canhestras em sua maioria, provam isso. O final, quando o esconderijo de Fu Manchu é destruído, é especialmente insatisfatório, tamanha a facilidade com que Nayland Smith elimina o gênio do mal.

Cartaz norte-americano
Mas o filme guarda alguns atrativos, especialmente para os fãs brasileiros. Apesar de a ação se passar na fronteira imaginária entre “Melia” e “Santa Cristabel” (em determinado momento, Smith diz que Fu Manchu está escondido “em uma determinada região da América do Sul, protegido de um lado pelos Andes e do outro pelo Mato Grosso”), Franco e sua equipe desembarcaram no Rio de Janeiro, onde o filme foi praticamente todo rodado.

Segundo a atriz, produtora e musa da pornochanchada carioca Olívia Pineschi (que aparece como uma cigana nas sequências onde “Melia” é invadida pelo bando de Sancho Lopez), Franco estava “impossível” em sua passagem pelo Rio. Encantado com a anatomia das brasileiras, o erudito Jesus chegou a convidar algumas das atrizes a acompanhá-lo em sua volta para a Espanha. Além da Floresta da Tijuca, que serviu como lar para Fu Manchu, a produção utilizou o Parque Lage (o “Palácio do Governador” de “Santa Cristabel”) e os estúdios da Atlântida, onde foram filmados alguns dos interiores da caverna do perigo amarelo, com suas masmorras mal iluminadas.

O ambiente quente e úmido certamente não foi dos mais agradáveis para Lee. Ainda segundo Olívia, Lee, apesar de muito simpático, reclamava bastante da pesada maquiagem, que praticamente o impedia de movimentar os olhos. Mesmo com o cansaço em virtude das limitações e do roteiro de Towers, que pouco lhe dá para fazer, Lee se sai maravilhosamente bem no papel, transformando cada linha de diálogo numa ameaça para seus adversários.

Dobradinha Chris Lee nas telas cariocas em 1969: FU MANCHU e DRÁCULA, O PERFIL DO DIABO (Dracula has risen from the grave, 1968), de Freddie Francis

O personagem mais curioso do filme é o bandido Sancho Lopez, vivido por Ricardo Palacios, veterano de dezenas de western spaghetti. Palacios, o mais entusiasmado de todos os atores, é um misto de 'bandolero' e cangaceiro e parece ter saído do set de um de seus westerns.

Franco nunca demonstrou muito apreço pelos mocinhos de seus filmes e FU MANCHU E O BEIJO DA MORTE não é exceção. O Nayland Smith de Greene (de CONTOS DO ALÉM, de Freddie Francis) passa a maior parte do filme deitado e imóvel. George, no papel do obrigatório “herói ocidental”, o arqueólogo Carl Jansen, ao menos se sai bem nas cenas de ação. O maior destaque é Marion-Crawford, novamente o 'comic relief' da narrativa. Na pele do Dr. Petrie, Crawford tem as melhores frases do filme, à custa de imortais hábitos britânicos, como a sua constante irritação com a falta de chá quente na selva.


Quanto ao elenco brasileiro, Frances Kahn (de OS PAQUERAS) e Isaura de Oliveira são as únicas a receberem crédito. Kahn é Carmen e Isaura é Yuma, integrantes do grupo de dez mulheres selecionadas por Fu Manchu para dominar o mundo. Isaura recebe atenção especial de Franco em uma longa sequência na qual tenta seduzir Sancho Lopez. Dentre os atores não creditados, além de Olívia – que ao longo de sua extensa carreira também atuou em outras produções estrangeiras como LOVE IN THE PACIFIC (1970), do polonês naturalizado brasileiro Zygmunt Sulistrowski, e 99 MULHERES (99 women, 1969), outro filme de Franco com cenas rodadas no Rio -, aparecem Oswaldo Loureiro, como o chefe dos capangas de Fu Manchu (usando bandana vermelha e trajando um roupão preto) e o veterano Rodolfo Arena, como uma autoridade de “Melia” rapidamente despachada pelo bando de Lopez.

O filme, uma eterna vítima de versões cortadas e em 'full screen', que destruíam alguns dos seus poucos charmes, está disponível em DVD norte-americano (Blue Underground), com imagem cristalina em widescreen anamórfico (1:66:1), realçando o colorido das locações cariocas e os belos enquadramentos do fotógrafo Manuel Merino; o som é alto e claro, evidenciando a inadequada trilha do parceiro habitual de Franco, Daniel White. Os extras contidos no DVD são igualmente impecáveis e contém entrevistas de Franco, Towers, Lee, Chin e Shirley Eaton. Franco diz que vir ao Brasil foi como realizar um sonho, enquanto Lee confirma sua irritação com a maquiagem e com as liberdades tomadas por Towers ao adaptar os originais de Rohmer. Já Eaton (a bond girl que morre asfixiada ao ter o corpo banhado por ouro em 007 CONTRA GOLDFINGER), não queria ver Towers nem pintado a ouro. Apesar de receber crédito proeminente, Eaton aparece em uma única e rápida cena de FU MANCHU E O BEIJO DA MORTE, roubada de A MULHER DO RIO (The girl from Rio, 1969), outra parceria Towers-Franco rodada simultaneamente ao 'Beijo da morte' no Rio de Janeiro! Em A MULHER DO RIO, Eaton reprisa o papel de Sumuru, uma espécie de Fu Manchu de saias, (também criado por Rohmer), que já havia interpretado em O MILHÃO DE OLHOS DE SUMURU (The million eyes of Su-muru, 1967), de Lindsay Shonteff. Assim, Eaton virou estrela de um filme no qual não atuou e pelo qual não foi paga!

Sumuru, Fu Manchu de saias. Produção de Towers dirigida por Lindsay Shonteff

Para o quinto e último filme da série, THE CASTLE OF FU MANCHU (1969), rodado logo em seguida a FU MANCHU E O BEIJO DA MORTE, Towers e Franco trocaram o ensolarado Rio de Janeiro por Istambul e Barcelona. Novamente baseado num roteiro original de Towers, 'Castle' é superior a seu antecessor, ainda que o produtor tenha obrigado Franco a trabalhar com um orçamento espartano; a pobreza é tamanha que faz o filme anterior parecer uma superprodução hollywoodiana.

"Fu Manchu para prefeito!": Lee, Maria Perschy e Günther Stoll em CASTLE OF FU MANCHU

Desta vez, Fu Manchu (Lee) e sua filha Lin Tang (Tsai Chin), renascidos das cinzas, pretendem dominar o mundo através de um bizarro plano que consiste no congelamento da água, em qualquer temperatura, quando misturada a cristais de ópio! Na sequencia pré-créditos, Fu Manchu dá a primeira demonstração de poder, destruindo um luxuoso transatlântico nos mares do Caribe. Mas como realizar uma sequência desse porte em meio a mais absoluta escassez de recursos? Simples: roube todas as cenas do naufrágio de SOMENTE DEUS POR TESTEMUNHA (A night to remember, 1958), clássico de Roy Ward Baker sobre o desastre do Titanic!


Pai e filha invadem o castelo do governo em Istambul (um imenso estoque de ópio) com o auxílio dos homens de Omar Pasha (José Manuel Martín), para logo depois traí-los, mantendo o braço direito de Pasha, a bela Lisa (Rosalba Neri), como refém. Apesar do diabólico plano já ter se mostrado eficiente, Fu Manchu e Lin Tang sequestram o Professor Heracles (Gustavo Re) a fim de aperfeiçoá-lo, sem se dar conta de que o cientista está à beira da morte, devido a um sério problema cardíaco. Para curá-lo, eles ordenam a captura do médico do professor, Dr. Kessler (Günther Stoll) e da enfermeira Ingrid (Maria Perschy), que são obrigados a realizar um transplante de coração. Para azar de Fu, Kessler era amigo de Nayland Smith (Richard Greene), que desconfiado, parte para Istambul. Com a ajuda do Dr. Petrie (o impagável Howard Marion-Crawford), de Pasha e do General Hamid (o próprio Franco), Nayland irá novamente por fim as terríveis maquinações do perigo amarelo.

Um filme que esnoba suas personagens femininas e no qual não há nenhuma temática sexual evidente não pode ser considerado como um verdadeiro filme de Franco, novamente atuando como um 'hired gun' de Towers. É curioso ver como o roteiro ignora a personagem de Rosalba Neri, musa do cinema italiano, após sua captura por Fu Manchu: seu papel, Lisa, uma criminosa obviamente lésbica, parece feito sob medida para Franco, mas não é aproveitado.

Mas se CASTLE OF FU MANCHU ainda está distante de obras autorais do diretor como DORIANA GREY (1976), ao menos Franco se mostra muito mais à vontade do que em FU MANCHU E O BEIJO DA MORTE, quando realizou um filme de ação mais convencional. Provavelmente, a maior liberdade foi consequência não só do minúsculo orçamento, mas também do fato de Franco filmar em Istambul, cidade com a qual já estava familiarizado e que serviu de cenário para vários de seus filmes (ainda que o castelo turco de Fu Manchu tenha sido rodado no Parque Güell, em Barcelona). É fácil observar como Franco e seu fotógrafo Manuel Merino fazem melhor proveito das paisagens turcas do que das locações cariocas vistas no quarto filme da série. Nada mais apropriado: um lar oriental para um vilão oriental.

Cartaz espanhol
'Castle', um delicioso “samba do crioulo doido” cinematográfico, mistura ingredientes de histórias em quadrinhos com literatura 'pulp' e todos os clichês possíveis e imagináveis do cinema de horror B. Não bastasse o inacreditável plano de Fu Manchu e as cenas roubadas de outros filmes, os “laboratórios” de pesquisa são equipados com meia dúzia de balões volumétricos e tubos de ensaio com substâncias coloridas borbulhantes; personagens são congelados e sequestrados em caixões; e o (bem sucedido!) transplante de coração parece saído de um filme de terror mexicano de René Cardona, Jr., tamanha a simplicidade do “centro cirúrgico” no qual é realizado (ainda que Franco consiga minimizar os óbvios cortes nos gastos com cenografia com uma espertíssima montagem). As masmorras do castelo de Fu Manchu são iluminadas de forma quase monocromática, banhadas alternadamente nas cores mais vibrantes já vistas desde um filme de Mario Bava, com Franco e Merino dando preferência para o verde e o lilás, conferindo um clima de pura psicodelia.

O final é, novamente, pouco convincente, mas a essa altura, o leitor/espectador provavelmente já captou o espírito do filme. Apenas relaxe e aproveite a oportunidade de assistir a última atuação de Lee no papel do perigo amarelo.

Tal como FU MANCHU E O BEIJO DA MORTE, CASTLE OF FU MANCHU foi lançado em DVD nos EUA pela Blue Underground, companhia do cineasta William Lustig. A versão apresentada não tem cortes (versões anteriores faziam menos sentido que a versão integral, devido a múltiplos cortes) e qualidade de imagem e som impecáveis.


A promessa de volta feita por Fu Manchu ao final de cada filme não se concretizou, já que, após 'Castle', o personagem simplesmente desapareceu das telas. Em 1980, Peter Sellers, em seu último papel, encarnou tanto Fu quanto Nayland Smith na comédia O DIABÓLICO DR. FU MANCHU (The fiendish plot of Dr. Fu Manchu), de Piers Haggard, enquanto o espanhol Alex de la Iglesia alimentou durante algum tempo a esperança de fazer uma nova versão cinematográfica das aventuras do vilão (que, infelizmente, nunca se materializou). Franco escalou sua mulher, Lina Romay (falecida em 2012), na pele da filha de Fu Manchu em ESCLAVAS DEL CRIMEN, de 1986. O lendário astro do horror espanhol, Paul Naschy (Jacinto Molina) apareceu brevemente como Fu Manchu em EL AULLIDO DEL DIABLO (1988), no qual interpreta diversos monstros e vilões clássicos do cinema e no curta metragem LA HIJA DE FUMANCHU'72 (1990), uma bem humorada homenagem ao personagem e aos filmes de Lee. Recentemente, Nicolas Cage interpretou o perigo amarelo num dos trailers – para longas fictícios – em GRINDHOUSE (2007), a reunião de dois longas de Robert Rodriguez (PLANETA TERROR) e Quentin Tarantino (À PROVA DE MORTE). O trailer no qual Cage é Fu Manchu, 'Werewolf women of the SS', foi dirigido pelo músico e cineasta Rob Zombie.

O DIABÓLICO DR. FU MANCHU, melancólica despedida do genial Peter Sellers
Enquanto uma nova produção não surge, o perigo amarelo provavelmente espera nas sombras, bolando seu mais novo plano… “The world shall hear from me again!”





sábado, 3 de agosto de 2013

CONEXÃO LAS VEGAS: A INCRÍVEL HISTÓRIA DE CHARLES NIZET



Nizet e o Las Vegas Park: montanha-russa e "hotel garrafa" de 40 andares

Nascido em Seraing (Bélgica), em 1932, mas radicado em Las Vegas (EUA), Charles Louis Nizet dirigiu e produziu, a partir do fim da década de 1960, filmes de guerra e horror, sempre com orçamentos minúsculos. Pouco se sabe da sua vida antes de COMMANDO SQUAD (1968), seu filme de estreia, um épico classe-Z ambientado na Segunda Guerra Mundial.

Ainda que não se possa acusá-lo de competente, seus filmes - todos inéditos nos cinemas brasileiros e com equipe e elenco praticamente desconhecidos - são muito divertidos.

Cartaz norte-americano de THE RAVAGER

Cartaz norte- americano de SLAVES OF LOVE
 
Nizet (agachado, à direita) e seu "mentor", John Huston





Para os ‘não iniciados’, vale dizer que o cinema ‘exploitation’ de Nizet segue a mesma linha de diretores como Ray Dennis Steckler e Al Adamson,cujos trabalhos,sempre misturando muita nudez, violência e nenhum dinheiro, eram direcionados para o então próspero mercado dos ‘drive-ins’ norte-americanos. Em entrevista ao jornal ‘Pioneiro’ de Caxias do Sul, em 2002, afirmou ser discípulo do cineasta John Huston e que “filmes devem ser feitos de acordo com o QI do povo, devem ser fáceis. Como diz um ditado americano: não devemos dar bolo aos porcos”.

Cartaz norte-americano de HELP ME... I'M POSSESSED!
Seu melhor filme, HELP ME... I'M POSSESSED! (1976) – recém-lançado em DVD nos EUA -, é uma grande salada de velhos clichês do cinema de horror: médico maluco, o assistente corcunda e sádico, um castelo fajuto no meio do deserto, uma masmorra onde se praticam torturas medievais e assassinatos misteriosos; THE RAVAGER (1970) é sobre um sujeito que retorna da Guerra do Vietnam e vira um estuprador explosivo - sim, ele explode suas vítimas e outros incautos; o argumento de SLAVES OF LOVE (1969) parece uma versão classe-Z do seriado LOST: uma tribo de mulheres usa um campo magnético para atrair aviões para sua ilha, tornando seus tripulantes escravos sexuais – uma desculpa para intermináveis sequências de ‘naturismo’; VOODOO HEARTBEAT (1972), aparentemente perdido - apesar do trailer circular por festivais e pela internet –, apresenta outro médico louco que, ao se injetar com um “elixir da juventude” - disputado por militares chineses para dar vida eterna ao líder Mao Tsé-Tung – vira uma criatura sedenta de sangue. No elenco, um “Mike Zapata” que, segundo a publicidade da época, era descendente do verdadeiro Zapata.

Cartaz norte-americano do perdido VOODOO HEARTBEAT (aka SEX SERUM OF DR. BLAKE)

Capa do VHS norte-americano de RESCUE FORCE
A história de Nizet fica ainda mais interessante a partir da década de 1990, após dirigir seu sétimo e último longa-metragem, RESCUE FORCE (1990) - que conta com o veterano Richard Harrison no elenco, além dos militares Don S. Davis e James ‘Bo’ Gritz, famoso nos anos 1980 por tentar resgatar prisioneiros de guerra norte-americanos no Vietnam. Apesar de a trama se passar no Oriente Médio, o filme foi inteiramente rodado no deserto de Nevada (EUA), no quintal de Nizet.

Numa edição de novembro de 1993 do Jornal do Brasil (RJ), uma matéria do 'Caderno B' descreve os planos avançados de um belga (ele mesmo) em ressuscitar a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (sim, aquela). Nizet - acompanhado de um sócio brasileiro - investiria "um milhão de dólares na recuperação de dois dos três estúdios". Ainda segundo o jornal, o então “prefeito de São Bernardo (SP), Walter José Demarchi, tem um acordo verbal com o governo estadual [Luiz Antonio Fleury Filho] para, com verba do Banespa, financiar a produção de filmes brasileiros”. A intenção de Nizet era óbvia: baratear custos. “Nos EUA, se filmamos uma planta, temos que pagar um ecologista para acompanhar as filmagens”, afirmava. A primeira produção da “nova Vera Cruz” seria estrelada pelo conterrâneo de Nizet, o astro das artes marciais Jean Claude Van Damme.

Nunca mais se ouviu falar do assunto.
 
 
O 'ravager' (o falecido ator Pierre Agostino) em atividade

Supostamente, essa era a segunda investida do belga em terras brasileiras. Segundo reportagem do jornal ‘Pioneiro’, de Caxias do Sul (RS), Nizet contava aos amigos que, na década de 1950, comprara uma mina de ouro em Minas Gerais, mas foi ameaçado de morte pelos próprios sócios e obrigado a retornar a Las Vegas. Décadas depois, casou-se com uma brasileira, que conhecera no aeroporto de Guarulhos. Viveram em Las Vegas por dois anos, de 1998 a 2000, quando decide retornar ao Brasil.

 É então que o nome do belga ressurge nos jornais brasileiros em grande estilo.

Capa do DVD-R da Something Weird (Seattle/EUA) de THE RAVAGER

Nizet e seu sócio, David Morgan, adquirem uma imensa área de 94 hectares às margens da rodovia RS-122, no pequeno município gaúcho de São Sebastião do Caí (RS), de apenas 22 mil habitantes.

Preço: R$600 mil reais, pagos à vista.

Objetivo: construção do gigantesco Las Vegas Park, um parque temático que contaria com a maior montanha-russa do mundo, com 3,5 quilômetros de extensão e 175 metros de altura, construída ao redor de um hotel de 40 andares, no formato de uma garrafa de Coca-Cola. 

O espaço ainda contaria com área para grandes shows e cinco hectares destinados à construção de estúdios cinematográficos. 

Orçamento: R$ 535 milhões de reais.

Nizet apresentou o projeto para empresários locais e donos de outros parques brasileiros. A meta era fazer os interessados comprarem cotas do empreendimento, formando uma associação. 

Fixou residência no município de Flores da Cunha (RS). Virou celebridade instantânea. 

Alugou um ginásio de esportes local, onde, segundo o jornalista Róger Ruffato, do jornal ‘Pioneiro’, “descarregou os contêineres que traziam filmes e câmeras velhos, material de cenografia, livros antigos, copos, pratos, transformadores e até batedeira [...] Tudo foi acondicionado no espaço trancado por cadeados e vigiado por câmeras que nunca funcionaram, apenas serviam para manter criminosos afastados. A mesma tática era empregada na casa onde Nizet vivia com a esposa e as enteadas”.

Apresentava-se na cidade como ex-agente da CIA. Levou um dos amigos que fez em Caixas do Sul (RS) para uma estada em Las Vegas, onde, segundo o hóspede, Nizet era dono de uma mansão, um Cadillac novo, camionetes, motos e um avião Cessna. 

Seu colega de profissão, o falecido diretor Ray Dennis Steckler - outro morador do estado de Nevada - quando perguntado sobre o belga, o descreveu como “um sujeito misterioso, sempre muito bem vestido, com ternos e sapatos caros e acompanhado de belas mulheres”. “Não é bom que você me conheça”, teria dito Nizet a Steckler. 

Na noite de 4 de fevereiro de 2003, Nizet recebeu um telefonema e saiu de casa. Ao voltar, percebeu que fora seguido por um carro até a porta de sua residência. Desceu de sua ‘Blazer’ armado, mas não teve como reagir ao primeiro disparo em sua direção. Seguiram-se mais dois tiros de pistola, o terceiro no rosto.

Nizet morreu na hora. Tinha 70 anos.

Dois suspeitos do crime foram presos. Meses antes do assassinato, um deles havia sido denunciado por Nizet por ameaça, supostamente após a assinatura da escritura da área do Las Vegas Park. A dupla foi inocentada em 2005, por falta de provas, e o inquérito foi arquivado.

O corpo de Nizet segue, até hoje, na capela da família de um amigo de Caxias do Sul (RS), Eliseu Marin, numa gaveta sem foto, nome ou qualquer indício de que seus restos encontram-se ali. Seu sócio voou dos EUA para acompanhar o enterro – as ex-esposas e filhos do cineasta não vieram – e levou os objetos estocados no ginásio.  Não deu entrevistas. 

Um investidor visionário? Um apaixonado por cinema? Um picareta? Nizet levou as respostas para o túmulo. Deixou um legado de filmes vagabundos e divertidos, além de um punhado de histórias mais estranhas que sua própria imaginação poderia criar.