quarta-feira, 18 de junho de 2014

POEIRA DIVULGA [1]: REGINA E O DRAGÃO DE OURO (1973)

O objetivo do POEIRA DIVULGA é disponibilizar parte da minha coleção de cartazes, lobby cards e, eventualmente, stills de filmes brasileiros e estrangeiros digitalizados em alta resolução (600k). Não há marcas d'água nos arquivos, portanto, usem à vontade. A ideia é divulgar os materiais e os próprios longas - alguns infelizmente perdidos e/ou esquecidos -, além, é claro, relembrar os técnicos e atores que os realizaram. 

Na primeira edição, CINE POEIRA traz o material de divulgação do infantil REGINA E O DRAGÃO DE OURO (Brasil/Japão, 1973), de Líbero Miguel Giachetta (1932-1989). Ator, roteirista e diretor de longas como IPANEMA TODA NUA (1971) e OS INSACIADOS (1981), Líbero dedicou a maior parte de sua carreira à dublagem, trabalhando em estúdios como Gravasom, AIC e Álamo, onde foi coordenador e responsável por vozes de personagens como o vilão 'Satan Goss', da série televisiva japonesa JASPION. Regina, o papel central, é interpretado pela menina Cecília Lemes, que já havia atuado em A MARCA DA FERRADURA (1971), de Nelson Teixeira Mendes, veículo para a dupla sertaneja Tonico e Tinoco. Tal como seu diretor, Cecília se tornou dubladora de sucesso: um de seus personagens mais famosos é a 'Chiquinha', do seriado mexicano CHAVES.

A produção é de Augusto Yamazato e do Instituto Cultural Tokuchika Miki (SP/Brasil), batizado em homenagem ao fundador da religião 'Perfect Liberty'. REGINA E O DRAGÃO DE OURO foi o último filme fotografado pelo veterano Konstantin Tkaczenko (1925-1973). Nascido na Ucrânia, lutou no exército soviético durante a Segunda Guerra Mundial e foi um dos muitos técnicos estrangeiros que emigraram para o Brasil no final da década de 1940. Ganhou o prêmio Saci em 1955 por seu trabalho em ARMAS DA VINGANÇA, de Alberto Severi e Carlos Coimbra.

A distribuição ficou a cargo da Cinedistri, de Oswaldo Massaini. Infelizmente, o filme não obteve o retorno esperado nas bilheterias. Hoje, tal como dezenas de produções brasileiras dos anos 1970, é extremamente difícil de ser visto. Circulava na internet um trecho de alguns minutos tirado de uma fita VHS, de péssima qualidade.

Sinopse [tirada do Guia de Filmes]: "Regina é uma garota viva e inteligente, amiga de um velho emigrante japonês, que lhe entrega antes de morrer uma relíquia de sua família: uma estatueta do Dragão de Ouro que possui poderes mágicos. O japonês pede à menina que viaje para o Japão com a missão de encontrar sua neta desaparecida. Regina se propõe a cumprir o desejo do velho Tanaka. Orientada pelo espírito do Dragão e de posse de cinco fichas mágicas que possuem o poder de realizar qualquer desejo, Regina transforma três de seus desenhos em bonecos vivos: Gaio, o papagaio Carioca, Jirimum, o macaco nortista, e Lebrinha, uma brasileirinha de qualquer estado. Com seus amiguinhos viaja numa enorme cegonha de papel e chega ao Japão. Na busca da neta de Tanaka os quatro são obrigados a enfrentar mil perigos, provocados por vilões que desejam apoderar-se da estatueta do Dragão e das fichas mágicas. Finalmente, graças aos sentimentos de bravura, amizade e solidariedade, Regina consegue cumprir sua missão, voltando ao Brasil em companhia da netinha de seu velho amigo japonês."


Cartaz, by Benício. Acervo Fábio Vellozo

Release da estreia carioca. Acervo Fábio Vellozo

Stills:












sábado, 26 de abril de 2014

BANANA DA TERRA!

(Texto originalmente publicado no catálogo da Mostra Curta Circuito 2014: http://www.curtacircuito.com.br/programacao/belo-horizonte/)

Imperial e as lebres Rose Di Primo e Kate Lyra no traço inconfundível de Benício

Natal de 1971: Stanley Kubrick assombrava o mundo com o explosivo Laranja mecânica (A clockwork orange, Inglaterra/EUA, 1971), adaptação do livro homônimo de Anthony Burgess. Mais atual que nunca, a história de Alex e seus amigos, uma gangue de estupradores e assassinos, se passava num futuro em que a violência do Estado contra o indivíduo era mais chocante que a praticada pelos delinquentes.

Brasil, 1972: o país vivia sob uma ditadura militar e a repressão política, comandada pelo então presidente, general Emílio Garrastazu Médici, atingia seu extremo. Os direitos dos cidadãos eram cerceados pelo infame Ato Institucional n° 5 (AI-5). Quem definia o que os brasileiros podiam ver, ouvir e ler eram os técnicos da DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas), ligada à Polícia Federal. Nos cinemas, na contramão da severa censura de costumes, as pornochanchadas, comédias que misturavam ingenuidade e alguma malícia – “os dilemas do dar e do comer”, como definiu o pesquisador Nuno Cesar Abreu – caíam nas graças dos espectadores. Inspiradas nas produções italianas – especialmente as estreladas pelo astro do gênero Lando Buzzanca, como Um siciliano na Dinamarca (Il vichingo venuto dal sud, Itália, 1971), de Steno e O supermacho (Homo Eroticus, Itália/França, 1971), de Marco Vicario - e impulsionadas pelo êxito de Os paqueras (RJ, 1969), de Reginaldo Faria e Adultério à brasileira (SP, 1969) e A viúva virgem (RJ, 1972), ambos de Pedro Carlos Rovai, tiveram no Beco do Cinema, no Rio de Janeiro e, principalmente, na Boca do Lixo, em São Paulo, seus dois maiores polos produtores.

Laranja mecânica nunca foi oficialmente proibido pela DCDP. Após exibição prévia para autoridades do governo em uma das famosas “cabines” do Palácio do Planalto, a distribuidora Warner foi avisada de que o filme seria integralmente vetado caso submetido à apreciação dos censores. O longa só seria lançado nos cinemas brasileiros seis anos depois, em 1978, acompanhado de ridículas bolinhas pretas que saltitavam na tela na tentativa de cobrir paus e xoxotas. Mesmo inédito, virou hit. O nome Laranja mecânica caiu na boca do brasileiro e serviria até de apelido para o escrete holandês na Copa do Mundo de 1974.

Corte rápido.

O “rei da pilantragem” Carlos Imperial (1935-1992) era multimídia antes mesmo de o termo existir. O “Gordo”, como era carinhosamente conhecido - “com mais de 100 quilos de peso, posso ser visto a olho nu, sem o auxílio de microscópio” -, marcava presença na vida cultural carioca desde a década anterior com programas de TV, filmes, colunas de jornais e revistas, peças de teatro e shows musicais. Compunha - Vem quente que eu estou fervendo e A praça são de sua autoria -, apresentava, escrevia, produzia, dirigia, atuava e não fugia de uma boa polêmica. Depois de Um edifício chamado 200 (RJ, 1974), sua estreia na direção cinematográfica, Imperial já havia anunciado o próximo projeto da CIPAL (Carlos Imperial Produções Artísticas Ltda.), a pornochanchada Como abater uma lebre - termo empregado por Carlos em sua coluna no jornal Última Hora (RJ) para denominar a figura feminina. Com a crescente curiosidade do povão em torno do “proibidão” de Kubrick, o Gordo, sempre oportunista, decidiu trocar o título da empreitada. A lebre virou fruta. Nascia A banana mecânica (RJ, 1974).

No roteiro, um veículo para o astro-produtor escrito a oito mãos pelo próprio, os primos Braz e Jesus Chediak e Sindoval Aguiar, Imperial é o Dr. Ferrão, um renomado psicanalista especializado em lebres que resolve os problemas de suas pacientes na cama.  Não poupa sequer a tia de sua noivinha, a virginal Cristina (a musa Rose Di Primo), a única que, para seu desespero, resiste ao charme do Gordo (que, aos 39 anos de idade, era um misto de Orson Welles e Buda). Para abater a lebre antes do casamento, Ferrão bola uma técnica revolucionária: a “sex surprise”. O máximo que consegue, no entanto, deixaria o lamentável pastor Marcos Feliciano com inveja: a “cura” de seu paciente gay, Paulo Frederico (Miguel Carrano).

Insatisfeito com o resultado de Um edifício chamado 200, que traía suas origens teatrais –baseava-se na peça homônima de Paulo Pontes –, Imperial espertamente botou a Banana na mão do cineasta mineiro Braz Chediak. Vindo do sucesso de Os mansos (RJ, 1973), no qual dirigiu o imortal Paulo Coelho no episódio O homem de quatro chifres, Chediak deu ritmo e leveza ao filme, e certamente ensinou um pouco de sua mise-en-scène ao Gordo, o que é facilmente verificável em produções posteriores como O sexomaníaco (RJ, 1976) e Delícias do sexo (RJ, 1980). A fotografia em cores quentes do veterano Hélio Silva – de Rio, 40 graus (RJ, 1955) e Rio, zona norte (RJ, 1957), ambos de Nelson Pereira dos Santos – é parte fundamental do apelo de Banana mecânica. Silva sabia extrair o máximo com o mínimo de recursos, e deu ao longa um apuro visual surpreendente para o (baixo) orçamento injetado por Imperial.

Cartaz do relançamento de O SEXO DAS BONECAS, o filme da cenoura, dirigido por Imperial. Acervo Fábio Vellozo

Mário Gomes em O SEXO DAS BONECAS. Lobby card. Acervo Fábio Vellozo

No elenco de apoio, caras conhecidas da TV e da pornochanchada carioca como Felipe Carone (Cornélio), Mário Petraglia (Carlitos) e Ary Fontoura (o detetive que tem fetiche por sutiãs), além de um time de lebres para ninguém botar defeito e de participações especiais impagáveis de Henriqueta Brieba e Pedrinho Aguinaga, “o homem mais bonito do Brasil”.

Como a maioria das pornochanchadas – que de pornográficas não tinham nada -, A banana mecânica foi amassada pelos críticos, que rechaçavam fortemente o “produto não politizado”. Era a época das “patrulhas ideológicas”, termo cunhado pela crítica Pola Vartuck, mas atribuído ao cineasta Cacá Diegues. O público, no entanto, gostou da fruta. Lançado no Rio de Janeiro em outubro de 1974 em oito salas, o filme faria, em números oficiais, 1.157.590 espectadores. Apesar de mostrar apenas meia dúzia de peitinhos, a DCDP não quis saber de conversa e exigiu a proibição para menores de 18 anos de idade.

É difícil imaginar quantos foram aos cinemas atraídos apenas pelo título matador, que nada tem a ver com o filme – afinal, a paródia com o “original” inglês nasce e morre na mudança das frutas e nos créditos de abertura, com a banana desenhada pelo cartunista Mixel Gantus. Mas, certamente, ninguém se sentiu enganado: A banana mecânica é perfeito enquanto síntese das intenções do Gordo e da eternamente “maldita” pornochanchada. Quem pagou o ingresso, sabia que estava entrando no terreno do deboche, da irreverência e da malícia. Sorrisos ao fim da sessão?  Esses são fáceis de imaginar.

domingo, 5 de janeiro de 2014

POEIRA ENTREVISTA, parte 5: CELSO FARIA



Celso (à esquerda) e Antonio de Teffé em DJANGO, O BASTARDO (1969). Acervo Fábio Vellozo

O Django bastardo de Antonio de Teffé chegava ao RJ em 7 de dezembro de 1970, via Fama Filmes. Acervo Fábio Vellozo

FV: Ainda em 1969, você fez um pequeno papel em Django, o bastardo (Django, il bastardo, Itália, 1969), de Sergio Garrone, escrito e estrelado pelo seu amigo Antonio de Teffé.

CF: Sim, soldado Kent! [Nota: Celso é o ator que dá a garrafa de uísque para o personagem de Teffé durante o flashback ambientado na Guerra Civil dos EUA. Ele morre pouco depois nos braços de Antonio].

Celso morto nos braços de Antonio. Acervo Fábio Vellozo

Antonio conseguiu o papel para mim, ele me ligou dizendo que tinha trabalho. Ele era um cara legal e me ajudou na Itália.

FV: Como?

CF: Apresentou-me a agentes e diretores. Não deu muito certo, mas ao menos ele tentou.

Vídeo 1: DJANGO, O BASTARDO (filme completo)

FV: Já que mencionamos Teffé e Esmeralda Barros, falemos sobre os demais brasileiros que trabalhavam no cinema italiano. Florinda Bolkan?

Florinda Bolkan: de Uruburetama (CE) para o mundo

CF: Havia um pavilhão enorme em Cinecittà onde se localizavam todos os camarins. Eu estava lá filmando algum western quando percebi que o camarim de Florinda era ao lado do meu.  Bati na porta, me apresentei e expliquei que eu era um ator brasileiro que estava fazendo um western atrás do outro e que queria experimentar outros gêneros, outros tipos de filmes. Pedi para que ela me colocasse em contato com a condessa [Marina] Cicogna, que havia lançado sua carreira. Ela concordou e me levou ao escritório da condessa, onde deixei centenas de fotos... E nunca mais ouvi falar de nenhuma das duas! (risos)

FV: Marília Branco?

CF: Ela era ex-mulher do Adolfo Celi. Eles casaram no Brasil, quando Celi trabalhava em teatro e fizeram algumas peças famosas, como a francesa Boeing-Boeing, um puta sucesso. Em São Paulo, Celi havia dirigido a primeira produção da Vera Cruz, Caiçara, em 1950. Acho que eles foram juntos para a Itália e se divorciaram lá. Eu a conheci quando vivíamos naquela pensão da qual lhe falei anteriormente. Ela teve um affair com o Fabio Testi e voltou para o Rio alguns anos antes de mim. Soube que ela se tornou alcoólatra e que acabou se suicidando, morrendo na pobreza. Uma história muito triste. Não lembro dela ter feito filmes na Itália.

Marília e grande elenco na peça A PERDA IRREPARÁVEL..., de Wanda Fabian, que estreava em 17 de fevereiro de 1965 no Teatro Copacabana. Acervo Fábio Vellozo

[Nota: Marília Branco e Celi – que havia sido seu professor de teatro no Tablado - casaram-se no dia 7 de agosto de 1962, no Rio de Janeiro, e se desquitaram em São Paulo em setembro de 1965, quando ela tinha apenas 23 anos, metade da idade do marido. A ex-modelo estrearia no cinema em El Justicero (1967), de Neslon Pereira dos Santos, e foi alçada ao posto de protagonista em Anuska, manequim e mulher (1968), de Francisco Ramalho, Jr. Sob a direção do então marido Adolfo Celi, estrelou a adaptação do romance de Marques Rebelo, Marafa (1963), atuando ao lado de Glauce Rocha e Cecil Thiré. O filme nunca foi concluído por falta de dinheiro. Debutou no cinema italiano com A noite da vergonha (Vergogna schifosi!..., Itália, 1969), de Mauro Severino, em que contracenou ao lado de Lino Capolicchio. Seus outros créditos incluem o giallo Il sorriso del ragno (inédito no Brasil, Itália, 1971), Per amore ou per forza (inédito no Brasil, Itália/França, 1971) e a comédia Mazzabubù... Quante corna stanno quaggiù? (inédito no Brasil, Itália, 1971). Depois de voltar ao Brasil, participou da novela O rebu (1974) e virou figurinha fácil nas crônicas de Carlinhos de Oliveira e na coluna social de Léa Maria, ambos do Jornal do Brasil (RJ). Pouco foi divulgado na imprensa sobre seu falecimento].

Estreia carioca com três anos de atraso de A NOITE DA VERGONHA, em 7 de dezembro de 1972, via Paris Filmes. Acervo Fábio Vellozo

Capa da revista italiana Bigfilm n°7 (setembro de 1970), com a fotonovela de A NOITE DA VERGONHA
 
Na foto maior, na página da direita, Marília e Lino Capolicchio se beijam

Vídeo 2: lisergia e pop art em A NOITE DA VERGONHA, ao som da espetacular faixa 'Matto, caldo, soldi, morto... girotondo', composta por Ennio Morricone para a trilha do filme

Marília Branco e Gianni Combi na fotonovela O pecado de um homem. Abril de 1972

Vídeo 3: uma das melhores sequências do filme, uma pequena joia desconhecida, ao som da mesma faixa

Locandina italiana de IL SORRISO DEL RAGNO, de Massimo Castellani

FV: Rejane Medeiros?

CF: Rejane interpretou Anita Garibaldi em ll giovane Garibaldi (TV, Itália, 1974) [Nota: o futuro ídolo dos polizieschi, Maurizio Merli, fez o papel de Garibaldi], uma superprodução da Rai dirigida pelo Franco Rossi aqui no sul do Brasil. Tinha um puta elenco e foi um sucesso enorme na Itália. Eu liguei para ela e disse: “Você precisa vir para cá, a minissérie é um estouro!”. Ela foi, fez alguns filmes, como um de máfia com o [ator] Tony Musante [Nota: Medeiros atuou em um dos episódios da minissérie Alle origini della mafia (TV, Itália/Inglaterra, 1976), de Enzo Muzii] e iria trabalhar com Vittorio De Sica numa adaptação de um livro do Gabriele D’Annunzio quando ele faleceu.

Rejane Medeiros na Revista Status n° 69 (abril de 1980)

FV: Conte sua história com a atriz Pier Angeli.

Pier Angeli

CF: Eu estava fazendo um western em Livorno – mais um! (risos) -, onde o Carlo Ponti tinha um estúdio pequeno para produções B e C. Além de nós, havia outra equipe rodando um filme de terror. Durante um intervalo, vi uma mulher linda no lobby do hotel Intercontinental, completamente bêbada (risos), me encarando. Seu rosto era familiar, mas não sabia de onde. Eu não desviei o olhar e passei a encará-la também. Um “caubói” que estava sentado ao meu lado percebeu o que estava ocorrendo e falou:

 - Aquela é a Anna Maria Pierangeli!

- Puta merda, é mesmo! Pensei que morasse em Hollywood! O que diabos ela está fazendo nesse buraco?

O curioso é que eu já a conhecia dos tempos da Vera Cruz, quando estrelas da MGM como Debbie Reynolds e Vic Damone visitaram os estúdios. Anna Maria estava entre o grupo que veio a São Paulo.

Ainda que não trabalhasse mais nos EUA, ela era bastante famosa. Pensei: “Não posso perder essa oportunidade, tenho que tirar algum proveito da situação!” (risos). Porra, eu estava no mesmo hotel da Pier Angeli, que me deu uma baita manjada! (risos). Bolei uma jogada. Chamei nosso fotógrafo de still e pedi que ele fosse para a praia com suas melhores lentes:

- Vou tentar rolar na areia abraçado a ela e vamos vender as fotos para todas as revistas da Itália! (risos).

Ela foi para o café junto ao lobby e eu coloquei meu plano em prática. Sentei ao seu lado, puxei conversa, disse que a conhecia do Brasil, que ela estava linda e mais um monte de besteiras. Ela não lembrava porra nenhuma, estava aérea, e eu também havia bebido vinho no almoço - uma tradição nos sets italianos da época. Perguntei se queria ir à praia e, para meu espanto, ela topou! Apenas disse que precisava pegar o maiô em seu apartamento.

Entramos juntos no elevador e, quando fui apertar o botão do segundo andar, ela segurou meu dedo e o levou até o do oitavo andar, onde ela estava hospedada! Fomos para o quarto dela e eu esqueci da praia, do fotógrafo e das revistas! (risos). O problema é que passamos a tarde inteira bebendo champanhe com laranja - o que, para mim, era muito exótico! – e não faço a menor ideia se trepamos ou não! (risos). Nós apagamos!

Minha única recordação daquele dia é de ter sentido o drama que ela vivia. Pouco depois de chegarmos ao quarto, ela estava de pé junto à janela, viu alguém lá embaixo - um sujeito chamado Martinelli, que devia ser o diretor do tal filme de horror que ela estava fazendo – e começou a gritar:

- Eu trabalhei com Paul Newman, em Hollywood! Não é verdade, Martinelli?  Não é verdade?!

FV: Quando isso ocorreu, Celso?

CF: 1969 ou 1970. Quando finalmente desci, meus colegas “caubóis” me cercaram, querendo saber como havia sido a suposta tarde de amor. “Essa mulher não vai durar muito”, falei. Ela estava profundamente deprimida e não sabia lidar com o fato de que não era mais uma estrela. Não foi surpresa nenhuma quando, pouco tempo depois, vi que ela havia morrido em Beverly Hills, com uma overdose de Nembutal.

O casal James Dean e Pier Angeli

[Nota: a informação de Celso é precisa. Em 1969, Pier Angeli atuou, em Livorno, no drama de suspense Quell’amore particolare (inédito no Brasil, Itália, 1969), do diretor Carlo Martinelli, que faleceu antes do término das filmagens. O longa permaneceu inédito na Itália até a década de 1980, apesar das presenças de Angeli e Enrico Maria Salerno no elenco. A atriz faleceu no dia 10 de setembro de 1971, nos EUA, aos 39 anos de idade. Em seu currículo, a ex-namorada de James Dean deixou clássicos como Marcado pela sarjeta (Somebody up there likes me, EUA, 1956), a cinebiografia do boxeador Rocky Graziano dirigida por Robert Wise, em que contracena com Paul Newman].

Locandina italiana

Vídeo 4: trecho de QUELL'AMORE PARTICOLARE com Pier Angeli (em italiano)

FV: Conte como você e Anselmo Duarte encontraram Federico Fellini.

CF: Fellini estava rodando Roma de Fellini (Roma, Itália/França, 1972) em Cinecittà; Anselmo estava em Roma enquanto eu filmava algum western na Villa de Cinecittá. Os dois se conheceram quando O pagador de promessas venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962 e tornaram-se amigos. Dez anos haviam se passado e Anselmo me contou que queria muito revê-lo. 

Celso, o galã, na entrada dos estúdios da Cinecittà. Acervo Fábio Vellozo

Eu tinha um conhecido, um roteirista chamado Renzo Cerrato, que era bastante próximo de Fellini. Não sei se algum de seus roteiros chegou a ser produzido. Todos sabiam que era praticamente impossível chegar até o maestro durante as filmagens, mas implorei para que Renzo nos levasse até ele. Não me pergunte como, mas o fato é que ele conseguiu. Quando Fellini viu Anselmo, parou tudo, veio em nossa direção e tascou-lhe um beijo. Passamos a tarde conversando e bebendo litros de uísque. Depois que você visitou Anselmo, ele me ligou e eu perguntei o porquê de não termos tirado uma mísera foto sequer naquele dia. "Porque nós somos uns imbecis, Celso", ele respondeu.

[Nota: Entrevistei o octogenário Anselmo Duarte em Salto (SP), em agosto de 2003, que contou a mesma história, omitindo o nome de Cerrato, que tem diversos créditos como assistente de direção e um longa como codiretor, Assassinos de aluguel (Niente rose per OSS 117, Itália/França, 1968), com John Gavin na pele do espião Hubert Bonisseur de La Bath, o OSS 117].

O homem da Palma de Ouro e este humilde escriba, em Salto (SP). Agosto de 2003. Acervo Fábio Vellozo

Fim da PARTE 5

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

POEIRA ENTREVISTA, parte 4: CELSO FARIA



A River Filmes lançava PEÇA PERDÃO A DEUS, NUNCA A MIM em 7 de dezembro de 1970, no RJ, no impressionante circuito Bruni. Acervo Fábio Vellozo
 
FV: Em 1968, você e Vincenzo Musolino trabalharam juntos novamente em Peça perdão a Deus, nunca a mim (Chiedi perdono a Dio... Non a me, Itália, 1968), estrelando Giorgio Ardisson.

CF: Exato, mas era apenas uma sequência, em que o Ardisson me mata numa mesa de pôquer, ao lado do [ator] Omero Gargano.

Giorgio Ardisson (de costas), Omero Gargano e Celso Faria no pôquer de sangue de PEÇA PERDÃO A DEUS, NUNCA A MIM. Acervo Fábio Vellozo

Trailer de PEÇA PERDÃO A DEUS, NUNCA A MIM  

FV: Em 1969, Musolino lhe deu um ótimo papel em Quintana, uma espécie de Zorro italiano.

QUINTANA chegava ao RJ para defender os fracos e oprimidos em 7 de setembro de 1970, via Famafilmes. Acervo Fábio Vellozo

CF: Ele era muito leal aos amigos, fossem atores ou técnicos. Antes da escolha do elenco, Musolino organizou uma festa e eu e minha namorada, uma italiana chamada Angioletta, fomos convidados. Quando cheguei, vi o [ator] Fabio Testi, que não era da “turma” do Vincenzo. Logo alguém me disse que não haveria papel para mim no filme, que o Testi havia sido escolhido em meu lugar. Me senti um merda: “Caralho, Musolino esqueceu de mim”. 

Pouco depois, ouço a voz do Musolino, que falava gritando: “FARIA! VIENE QUA! [Venha aqui!]. E então ele disse para a Angioletta: “Signora, per favore, pinte o cabelo dele de louro, tenho um papel bom para o Celso, que não será mais um vilão!”. Ele precisava de um rosto mais “suave”, por isso pediu para que eu tingisse o cabelo, já que meu personagem era bastante trágico. E o Testi desapareceu da festa! (risos)

Musolino era incrível, todos o amavam. Havia um sujeito, um dublê – cascatore, como eles chamam em italiano – que tinha caído de um cavalo e ficara paraplégico. Musolino nunca esquecia dele, sabia que o cara precisava de dinheiro e arranjava sempre uma participação, algum trabalho. Omero Gargano e o maestro Felice De Stefano também o idolatravam. A morte repentina dele foi um choque para todos nós.

Vincenzo Musolino em DUE SOLDI DI SPERANZA (1952), de Renato Castellani

FV: Ele faleceu durante uma cirurgia, correto?

CF: Lembro que foi em decorrência de um problema na perna, uma infecção, mas não sei se foi durante uma operação.

FV: Ele era muito jovem, não?

CF: Sim, e extremamente saudável, era forte à beça, um típico siciliano. Antes de dirigir, ele fora um excelente ator, tendo trabalhado com o Pietro Germi e o Renato Castellani.

Fotobusta de DUE SOLDI DI SPERANZA (1952). Na foto, Musolino e Maria Fiore

FV: O filme de Castellani, Due soldi di speranza (inédito no circuito comercial brasileiro, Itália, 1952), ganhou o Grande Prêmio do Festival de Cannes em 1952 (equivalente a atual Palma de Ouro, instituída três anos depois, em 1955). [Nota: além do prêmio máximo em Cannes, dividido com Othello, de Orson Welles, o longa de Castellani faturou três Fitas de Prata (Nastro d’Argento, concedido pelo Sindicato Nacional dos Críticos de Cinema Italianos), incluindo melhor filme, e foi indicado ao Bafta (concedido pela British Academy of Film and Television Arts) de melhor filme estrangeiro].


Cartaz francês de DUE SOLDI DI SPERANZA (1952), de Renato Castellani

Filme completo: DUE SOLDI DI SPERANZA, de Renato Castellani


Musolino em still de DUE SOLDI DI SPERANZA (1952)
CF: Sim, e ele era o protagonista da fita. Musolino também foi responsável por lançar a carreira do Antonio de Teffé nos westerns em Só contra todos (Perché uccidi ancora, Itália/Espanha, 1965), que ele escreveu e produziu [Nota: creditado ao espanhol José Antonio de la Loma, o filme foi dirigido por Edoardo Mulargia]. 

O enterro de Vincenzo estava abarrotado de gente. Esmeralda Barros, sua namorada, chorava copiosamente. Ele estava preparando uma fita de guerra quando faleceu, havia um boom na Itália de filmes sobre a 2ª Guerra Mundial e ele havia me dito que havia um ótimo papel para mim.

FV: Você considera o ‘Manuel’ de Quintana o seu melhor papel na Itália?

CF: Sim, junto com o vilão de Django não espera... Mata. Em 1969, Musolino era o meu melhor amigo, eu estava sempre no escritório da sua produtora, Intercontinental, jogando cartas. Eu o apresentei à Esmeralda Barros, que me procurou quando chegou à Itália: “Celso, me ajude, por favor!”. Foi a minha vez de demonstrar gratidão a Vincenzo e eu a levei para conhecê-lo, e os dois tornaram-se amantes! (risos). Aliás, ele lançou a Esmeralda no cinema italiano colocando-a no Peça perdão a Deus, nunca a mim [Nota: Esmeralda aparece brevemente como a esposa do ator e diretor Tano Cimarosa].

Musolino também me arranjou outro papel, de xerife.

FV: É mesmo? Não tenho registro de outra parceria.

CF: Sim, mas o filme nunca foi concluído. Sim, foi isso. O protagonista - um norte-americano desconhecido, acho - sofreu uma lesão grave na perna ao saltar de um cavalo.

FV: Você lembra do nome do ator?

CF: Não, mas tenho uma foto aqui. [Nota: Celso me mostra a foto abaixo, caracterizado como xerife e segurando a claquete com o título Senza respiro]. Olhe, essa é a Sophia Kammara, uma atriz grega, e ali é o Edoardo Mulargia, à esquerda, de costas. Ele era o diretor e Musolino era o produtor.

Edoardo Mulargia (primeiro à esquerda na foto, de costas), Sophia Kammara e o xerife Celso Faria no set de SENZA RESPIRO. Acervo Fábio Vellozo

[Nota: apesar de casos de filmes não concluídos por acidentes ou falta de dinheiro serem comuns na Itália dos anos 1960 e 1970, acredito que Celso tenha se confundido e que Senza respiro fosse o título original de Fico só mas mato todos (Rimase uno solo e fu la morte per tutti!, Itália, 1971), no qual interpreta um xerife. O filme foi dirigido por Mulargia e o diretor de fotografia era Alessandro Modica, cujo nome aparece na claquete da foto].

FV: Ainda sobre Quintana: vamos falar sobre seus colegas de elenco. Femi Benussi?

CF: Ah, uma beleza. Ela era iugoslava. Nós nos divertimos muito nos camarins de Cinecittà. Mais, não posso dizer! (risos)

Femi Benussi: garota da capa da Cinesex

Femi Benussi

FV: George Stevenson, o protagonista?

Tony Dimitri, o "George Stevenson"
CF: Ele era italiano [Nota: Stevenson era pseudônimo do ator e músico italiano Tony Dimitri], uma invenção do Musolino. Não sei o que ele viu no sujeito, que era esquisito, desengonçado, não sabia andar. Acho que era uma bichona (risos). Vai ver ele colocou dinheiro no filme, isso era comum na época. Você lembra do ator espanhol Conrado Sanmartin? Estava em todas, investia nas produções e sempre ‘comprava’ um papel.


FV: Você me falou a respeito de ter se recusado a fazer uma sequência no Quintana. Por quê?

CF: Sim, eu teria que correr, botar as duas mãos na bunda do cavalo, subir e sair galopando em alta velocidade. Convenci Musolino de que era trabalho para um dublê, não para mim. Nessa época, eu já era ‘alguém’, podia dizer ‘não’ ou dar sugestões. Num dos filmes do Fidani [Django e Sartana no dia da vingança (Arrivano Django e Sartana... è la fine!, Itália, 1970)], eu levava um tiro no alto de um morro e ele queria que eu rolasse montanha abaixo, que era só pedra! De todos os tamanhos! (risos).  Eu disse: “Cazzo, Fidani, você quer me matar?” (risos). Arranjaram um cascatore para fazer.

Celso, de cabelo pintado, e cadeira personalizada no set de QUINTANA. Acervo Fábio Vellozo

O gigantesco quattro foglie (1,98m x 1,40m) de QUINTANA. Acervo Fábio Vellozo

O gigantesco quattro foglie (1,98m x 1,40m) de QUINTANA [2]. Acervo Fábio Vellozo

O gigantesco quattro foglie de QUINTANA [3]: no detalhe, o autógrafo de Celso, datado de 09/09/2003. Acervo Fábio Vellozo

QUINTANA - créditos e sequência inicial

FV: Ainda em 1969, você foi ‘Ramirez’, um dos quatro que tentam matar Sartana (Jeff Cameron) em Sou Sartana, venham em quatro para morrer (...E vennero in quattro per uccidere Sartana, Itália, 1969), dirigido por Fidani.

CF: Sim, o atirador de facas!

Mais um Sartana chegava ao RJ: estreia carioca de SOU SARTANA, VENHAM EM QUATRO PARA MORRER, em 31 de agosto de 1970, via Famafilmes. Acervo Fábio Vellozo

Celso leva a pior em SOU SARTANA, VENHAM EM QUATRO PARA MORRER. Lobby card brasileiro. Acervo Fábio Vellozo

Créditos de abertura de SOU SARTANA, VENHAM EM QUATRO PARA MORRER 

FV: Fidani tinha um grupo de pessoas com as quais sempre trabalhava: Cameron, “Dennis Colt” (pseudônimo de Benito Pacifico), o compositor Coriolano ‘Lalo’ Gori. Você lembra deles?

CF: Pouco. É como eu lhe disse, todos os diretores, famosos ou desconhecidos, tinham a sua patota, profissionais com quem se sentiam à vontade para trabalhar. Fidani não era diferente.

Demofilo Fidani (de óculos) e sua "patota": Fabio Testi (primeiro à esquerda na foto) abraçado à Simonetta Vitelli (filha de Fidani), Nino Scarciofolo ("Jeff Cameron") e o mais popular ator iraniano de todos os tempos, Mohamad Ali Fardin. Acervo Simonetta Vitelli

Fidani e sua gangue no set de SOU SARTANA, VENHAM EM QUATRO PARA MORRER. Fidani está de blusa branca e óculos, na segunda fileira. À direita  (na foto), Sartana (Jeff Cameron), com o cabelo pintado de louro, e Milla Vitelli Valenza, sua esposa e 'faz tudo' nos filmes. Acervo Simonetta Vitelli

FV: Você costumava assistir os seus filmes nos cinemas?

CF: Não, sempre os via nas exibições que os produtores programavam para os atores e a equipe.

FV: Os westerns de Fidani eram exibidos em Roma ou apenas no interior da Itália?

CF: Não, nas grandes cidades também, como Roma e Milão. Obviamente, eles passavam em cinemas vagabundos, em poeiras, nos subúrbios. Apenas os westerns classe A, de Leone ou de Sollima, eram exibidos nos grandes cinemas de Roma.


Fim da PARTE 4