domingo, 22 de dezembro de 2013

POEIRA ENTREVISTA, parte 1: CELSO FARIA

A entrevista abaixo foi conduzida em Maricá (RJ), no início de 2003, na casa do ator Celso Faria. Foi publicada uma única vez, no mesmo ano, numa versão traduzida para o inglês para o número 62 do lendário fanzine norte-americano WAI! (Westerns... All'italiana!), do pesquisador Tom Betts. É a mais completa entrevista conduzida com Celso e foca na sua carreira no cinema italiano, especialmente nos westerns spaghetti, mas acaba traçando um painel da dolce vita romana dos anos 1960 e da indústria cinematográfica local.

Essa é a parte 1 de um total de 7. 

Celso Faria e Fábio Vellozo. Niterói, 2003. Acervo Fábio Vellozo

Boa leitura e divirtam-se!


Fábio Vellozo: Quando criança, você era um fã de westerns? Quem eram seus heróis de infância?

Celso Faria: Eu amava tanto o gênero que, no carnaval, eu só me fantasiava de caubói. O meu ídolo era o Wiliiam Boyd, o Hopalong Cassidy.

FV: Você era fã dos westerns spaghetti antes de ir para a Itália atuar no gênero?

CF: Sim! Sergio Leone era um gênio. O filme que ele fez com o [Charles] Bronson...

FV: Era uma vez no Oeste.

CF: Sim, uma obra-prima, um dos maiores filmes de todos os tempos!

FV: Fale sobre você. O que você fazia antes de se tornar ator?

CF: Um monte de coisas. Meu primeiro trabalho foi como corretor de imóveis. Eu já era fanático por cinema e trabalhava como figurante nos estúdios da Vera Cruz, em São Paulo. Queria ser ator em tempo integral, mas era impossível, eu era um figurante, ganhava uma ninharia. Se largasse o emprego, como iria pagar minhas contas? Quando a Vera Cruz praticamente faliu, eu continuei como corretor de imóveis e depois arranjei trabalho como jornalista. Naquela época, existia um jornal em São Paulo chamado O Tempo. Fui até à sede deles para vender um terreno ou coisa parecida. O dono do jornal me viu e reconheceu meu rosto dos filmes da Vera Cruz! Batemos um papo e ele me convidou para assinar uma coluna sobre a vida noturna de São Paulo, que escrevi durante vários anos.

Cartaz de Rebelião em Vila Rica. Acervo Cinemateca Brasileira

FV: Seu primeiro grande trabalho foi em Rebelião em Vila Rica (1958), dirigido pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira. O filme é uma versão moderna da Inconfidência Mineira, com a ação situada numa universidade, em 1957. Como você conseguiu o papel?

Abílio Pereira de Almeida e Nydia Lícia na peça A MULHER DO PRÓXIMO (1949), escrita e dirigida por Abílio. Acervo CEDOC - Funarte

CF: Através de um homem chamado Abílio Pereira de Almeida. Ele era o chefe na Vera Cruz quando eles retornaram com o nome Brasil Filmes. Esse cara foi como um pai para mim, ele me adorava. Eu devo o Rebelião em Vila Rica a ele. Claro, os irmãos Santos Pereira me aprovaram, mas foi o Abílio que os convenceu de que eu era capaz de fazer um papel importante. Ele também foi responsável pela minha estreia no teatro, em uma peça escrita por ele. Fui muito elogiado por esse papel. Engraçado é que minha estreia também foi minha despedida! Nunca mais fiz nenhuma peça depois disso! O Abílio era um cara formidável. Anos mais tarde, quando voltei da Itália, ele foi a primeira pessoa para quem liguei. Infelizmente, ele se matou em 1977.


Capa do DVD italiano. Acervo Fábio Vellozo

FV: Em 1962, você trabalhou em uma coprodução ítalo-franco-brasileira, Copacabana Palace.

Estreia de COPACABANA PALACE no circuito carioca em 2 de dezembro de 1963, via Condor Filmes. Acervo Fábio Vellozo

CF: Porra, eu me lembro da Sylva Koscina, um mulherão! Ela fazia um piloto da ‘Panair’ no filme. Foi dirigido pelo Stefano Vanzina, que assinava como Steno, um cara baixinho e muito magrinho.

Ele Ela #43 de 1972 com La Koscina na capa

FV: A maior parte da equipe era italiana. Qual a diferença para as equipes brasileiras com as quais você estava acostumado?

CF: Nenhuma.

FV: Alguma anedota de bastidores?

CF: Porra, um monte! Lembro que rodamos uma sequência no Aeroporto de Guarulhos e eu já estava preparado, vestido de piloto. Eu estava no lobby, a caminho do set de filmagem e tive uma ideia: comecei a andar como se estivesse bêbado! Fiquei gritando: “Cadê a merda do avião? Não vejo nada aqui!”. As pessoas nas filas do check-in ficaram apavoradas! Quando eu finalmente cheguei ao set, o Steno ria de quase rolar no chão! Ele me disse: “Ah, se eu pudesse colocar essa ‘gag’ no filme!”. Fiquei contente.

FV: Você se lembra do fotógrafo do filme?

Massimo Dallamano em ação

CF: Sim, claro, Massimo Dallamano, o “El macacón”! A equipe só o chamava assim, ele parecia um macaco! Um baita profissional, mas que nunca me convidou para trabalhar com ele enquanto estive na Itália. Filho da puta (risos). Ele era casado com uma brasileira naquela época, se não me engano.




FV: Além de Koscina, o elenco ainda incluía uma estrela, a francesa Mylène Demongeot e a Laura Brown.

CF: A Laura se tornou uma grande amiga quando morávamos em Roma. Eu não lhe mostrei as fotos? [Celso mostra uma foto de Laura dedicada para ele]. Ela fez um filme com um diretor chamado Guido Malatesta...

FV: Caçadores de cabeças (Maciste contro i cacciatori di teste, Itália, 1963)

CF: Sim. Ela fazia parte de um grupo de dançarinas chamado Bluebell Girls, junto com a Gloria Paul. Elas dançavam em cabarés por toda a Europa e faziam um puta sucesso. Lembro também que a Demongeot teve um caso com o Tom Jobim e deu uma merda danada, o casamento dele quase acabou (risos).

Da esquerda para a direita: Luiz Bonfá, Laura Brown, Gloria Paul, João Gilberto, Tom Jobim e Sylva Koscina em COPACABANA PALACE

FV: Quando você decidiu ir para a Itália? Quais os motivos que o levaram?

CF: Estava cada vez mais difícil de conseguir emprego aqui. Norma Bengell era minha amiga, eu já havia trabalhado com ela num filme do Hélio Souto, Conceição (1960). Bem, a Norma tinha ido para a Itália e estava construindo uma carreira muito bacana. Eu escrevi uma carta pedindo conselhos e se ela achava que eu tinha alguma chance de “acontecer” lá. Ela me respondeu dizendo que era difícil, mas não impossível, que a indústria estava a mil por hora. Aluguei meu apartamento em São Paulo para o Hélio Souto, vendi meu Jaguar  - isso partiu meu coração -  e comprei uma passagem de ida para Roma. Isso foi no fim de 1962. Eu sempre fui muito ousado, sempre me arrisquei.

Cheguei em Roma e fui para o Hotel De La Ville, caríssimo, na época. A Norma me apresentou ao agente dela e eu andava para cima e para baixo com uma pasta cheia de fotos minhas. Não aconteceu porra nenhuma. Nada de trabalho. Depois de um tempo, aconteceu o inevitável: o dinheiro acabou. Foi aí que encontrei outro brasileiro, Wladimir Lundgreen, que estava por lá tentando vender uns roteiros que ele havia escrito. Nunca vendeu porra nenhuma. Deixei o hotel e alugamos um apartamento vagabundo. Essa foi uma época difícil, viu? Ninguém tinha dinheiro. Eu costumava ir à feira, roubava um pedaço gigante de queijo e saía correndo o mais depressa que eu podia! (risos) A Laura Brown costumava nos visitar e comeu muito desse queijo roubado!

O Wladimir estava namorando uma menina americana que tinha sido figurante de Cleópatra (1963), provavelmente carregando um balde d’água perto da Elizabeth Taylor (risos). Ela também estava dura e sempre estava por lá. Ficamos um ano nesse apartamento e, depois de todos os tipos de desculpas para não pagar o aluguel, fomos despejados. O senhorio ficou com as nossas roupas como ‘pagamento’, até que pudéssemos quitar a dívida. Não tínhamos porra nenhuma e agora não sabíamos nem para onde ir. Nunca esqueci esse momento: eram seis horas da tarde e estávamos sentados na Piazzale Clodio, pensando no que fazer da vida. Wladimir tinha conseguido trazer o seu violão, seu único pertence. “Celso, estamos fodidos, é o fim. Para onde vamos?” Eu, com muita calma, respondi: 

- “Não se preocupe. Amanhã almoce comigo no Hotel De La Ville!”

- “Está louco?”

- “Não. Encontre-me lá amanhã. Táxi!”

Ele não acreditava. Eu não tinha uma lira no bolso e estava voltando para um dos hotéis mais caros de Roma... E de táxi!

Ao chegar no hotel, o porteiro me recebeu: 

- “Signore Faria, bem-vindo novamente! Sua bagagem?”

 - “Terrível, minhas malas foram extraviadas, foram todas para Milão. Olhe, estou sem troco, pague o táxi para mim, per favore, ok?”


Lá estava eu, morando num puta hotel, sem roupas e sem dinheiro. Uma ou duas semanas depois encontrei um amigo do meu pai na rua e pedi dinheiro emprestado, o suficiente para quitar a dívida e pegar minhas roupas de volta. Foi um dos períodos mais felizes da minha vida. Eu passava o dia no bar do hotel comendo e bebendo, enquanto comia mulheres de todos os cantos do mundo. Eram inglesas, americanas e até japonesas. Até que um dia fui chamado à recepção:

- “Signore, o que está havendo? O senhor não nos paga desde que chegou!”

- "Amico, você não acompanha as notícias? Aconteceu um golpe militar no meu país! Sangue foi derramado! O dinheiro das minhas fazendas está todo bloqueado! O que posso fazer?"

Eles foram gentis e me deixaram ficar, desde que eu não comesse mais! Mas eu era amigo do barman, Bruno, um napolitano. Os napolitanos se acham o povo mais esperto do mundo. Quando ele soube da minha história, ele me achou um Deus, o mestre dos mestres.

- “Celso, não se preocupe, eu lhe darei algo todo dia. Você tem a minha admiração!”

E foi assim que eu fiquei nesse hotel por cinco meses, bebendo, comendo e fodendo, até que me despejaram. De novo!

Fim da PARTE 1

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