sábado, 24 de agosto de 2013

EU SOU SARTANA: A FERA CARIOCA PARTE 3

A FERA foi solta nos cinemas cariocas em fevereiro de 1978, em seis salas no município do Rio (Pathé, Roma, Paratodos, Bruni Tijuca, Bruni Copacabana e Irajá) e no Cine Glória, de São João de Meriti. A estreia ocorreu mais de um ano e meio após a exibição na Itália - o visto de censura italiano data de julho de 1976. Pode-se supor que o motivo do atraso tenha sido burocrático: como o filme foi processado em laboratório italiano, a obtenção do famigerado Certificado de Produto Brasileiro (CPB) deve ter sido problemática.

A demora não ajudou e o filme passou batido nas bilheterias. Na segunda semana de exibição, o circuito já havia sido reduzido para apenas três salas. 

Só reapareceria em setembro de 1982, quando estreou na televisão brasileira na "Sessão Proibida", da TVS (atual SBT), no horário ingrato das 23h.

A recepção crítica, como esperado, não foi diferente. Italianos (ver a primeira parte do artigo) e brasileiros desceram a lenha:

Jornal do Brasil, 24 de fevereiro de 1978

Abre parêntesis.

A irritação do crítico com a concessão do CPB (após quase dois anos de espera!) a uma "coprodução desse nível" - que também contou com atores e técnicos brasileiros -, enquanto IRACEMA, UMA TRANSA AMAZÔNICA (Brasil, 1975), de Orlando Senna e Jorge Bodanzky (com zê), permanecia "na fila" é equivocada. IRACEMA, que foi processado em laboratório no exterior, ficou quatro anos na prateleira pois foi vítima da feroz censura política do então Ministro da Justiça, Armando Falcão - famoso pelo "democrático" bordão "nada a declarar". A burocracia - real - do certificado foi um pretexto para engavetar um filme que mostrava um Brasil que o regime militar queria esconder. São casos bastante distintos. E independentes.

Fecha parêntesis.


DESAFIANDO CRÍTICOS FERAS E TEMPESTADES!

URSUS (idem, 1961), de Carlo Campogalliani, com roteiro de Carnimeo. Dist. Art Films.

Franco & Ciccio são OS DOIS FILHOS DE RINGO
O desprezo unânime dos críticos não era novidade para o diretor Giuliano Carnimeo (1932 - ), um italiano de Bari especializado em gêneros esculhambados pela 'intelligentsia' como westerns e comédias eróticas. Tal como a maioria dos artífices do cinema popular local do pós-guerra, Carnimeo aprendeu o ofício nos sets de filmagem, como assistente de direção e roteirista de cineastas veteranos. Trabalhou com Carlo Campogalliani - no 'peplum' URSUS (idem, Itália/Espanha, 1961) -, Camillo Mastrocinque - ROMANCE NO INVERNO (Vacanze d'inverno, Itália/França, 1959) - e, principalmente, com Giorgio Simonelli, em veículos para a dupla de comediantes Franco Franchi e Ciccio Ingrassia - a versão peninsular de Jerry Lewis e Dean Martin - como OS DOIS MAFIOSOS (I due mafiosi, Itália/Espanha, 1964) e OS DOIS FILHOS DE RINGO (I due figli di Ringo, Itália, 1966). Quando Hollywood tomou o Tibre, de olho na boa estrutura e nos baixos custos de produção, Carnimeo aproveitou a oportunidade: dirigiu a versão italiana do primeiro filme europeu do norte-americano George Sherman, SUAVE É O AMOR (Panic button... operazione fisco!, Itália/EUA, 1963), com Jayne Mansfield e Maurice Chevalier.


A adoção de pseudônimos anglicizados por parte de diretores, técnicos e atores estrangeiros era uma lei não escrita na Itália dos anos 1960. Visando "americanizar" seus produtos, Sergio Leone virou "Bob Robertson", Antonio Margheriti renasceu como "Anthony M. Dawson" e, em casos mais esdrúxulos, o lendário cenógrafo Franco Fumagalli foi rebatizado, literalmente, como "Frank Smokecocks" em O DIABÓLICO DR. HICHCOCK (L'orribile segreto del Dr. Hichcock, Itália, 1962), de Riccardo Freda. Assim surgiu "Anthony Ascott", nome com que assinaria seus melhores trabalhos e acompanharia Carnimeo até o fim de sua carreira.
 
Jesus Cristo FACE A FACE COM O DIABO num filme de Anthony Ascott e Hugo Fregonese. Dist. River Filmes

A carreira de diretor deslancharia a partir de 1968, com dois westerns: o excelente FACE A FACE COM O DIABO (Joe... Cercati un posto per morire!/Find a place to die, Itália, 1968) - co-dirigido pelo argentino Hugo Fregonese e estrelado pelo ex-Jesus Cristo Jeffrey Hunter, visivelmente debilitado pelo excesso de goró - e o 'mezzo giallo' BANDOLEIROS VIOLENTOS EM FÚRIA (Il momento di uccidere, Itália/Alemanha, 1968), terceira parceria com seu ator fetiche, o uruguaio George Hilton.


No ano seguinte, um pistoleiro vestido de negro da cabeça aos pés cruzaria o caminho de Ascott. E o sucesso bateria à sua porta em grande estilo.

Gianni Garko é SARTANA

Corte rápido.

No final de 1966, a dupla Alberto Cardone e Mario Siciliano lançava seu segundo western bíblico, o excepcional JOHNNY TEXAS (1000 dollari sul nero/Blood at sundown, Itália/Alemanha, 1966), que praticamente repetia equipe e elenco do filme anterior, SETE DÓLARES ENSANGUENTADOS (7 dollari sul rosso, Itália/Espanha, 1966). A estrela da companhia era novamente o astro ítalo-brasileiro Antonio de Teffé, o "Anthony Steffen".

'Fotobusta' italiana de JOHNNY TEXAS. Na TV brasileira, o filme foi exibido como MIL DÓLARES NO PRETO

O roteiro, escrito a quatro mãos por Ernesto Gastaldi e Vittorio Salerno, reinventa a história de Caim e Abel no Velho Oeste. No filme, o personagem de Teffé volta à cidade natal após cumprir pena por um crime cometido por seu irmão, o sádico "el general" Sartana (Gianni Garko, creditado como John Garko). Obcecado pela mãe e com delírios de divindade, Sartana habita um templo asteca em pleno deserto e não perde a chance de chutar mulheres e inválidos. Garko, inspirando-se no gângster de Richard Widmark em O BEIJO DA MORTE (Kiss of death, EUA, 1947), de Henry Hathaway, rouba cada uma das cenas em que aparece. Em entrevista à revista norte-americana "Video Watchdog", Gastaldi revelou que o nome do personagem surgiu quando ele e Salerno trocaram "uma das letras do nome do general mexicano Antonio López de Santa Anna", o polêmico "Napoleão mexicano".

Santa Anna, quem diria, acabou em Cinecittà

O sucesso foi estrondoso, especialmente na Alemanha.
 
O produtor italiano Aldo Addobbati foi rápido no gatilho e procurou Garko para protagonizar um novo western. O roteiro inicialmente proposto - mais uma história de vingança - não agradou e foi recusado pelo ator,  que queria exercitar sua veia cômica. Propôs uma troca: faria o filme caso pudesse escolher o roteiro. Garko relembrou sua versão da história à revista italiana "Nocturno":

"Mal assinei o contrato, Addobbati me mostrou um cartaz no qual se lia em letras garrafais: 'John Garko in SARTANA'. Não entendi. 'Mas o que é isso?', perguntei, 'Eu não fiz esse filme!' E ele: 'O personagem do general Sartana em JOHNNY TEXAS agradou tanto aos alemães que eles decidiram mudar o título do filme'. Eu não fazia ideia do sucesso na Alemanha. Aldo disse: 'O filme que vamos fazer vai se chamar SARTANA, pois eu já vendi o projeto aos alemães com esse título!' Bem, se eu soubesse disso antes de assinar o maldito contrato, teria pedido mais dinheiro, mas fiquei feliz em ter a palavra final no roteiro".

Cartaz francês de JOHNNY TEXAS

Garko trouxe um amigo, Renato Izzo, para trabalhar no tratamento escrito por Fabio Piccioni, Luigi De Santis e Adolfo Cagnacci, que foi bastante modificado. A ele se juntou o cineasta Gianfranco Parolini, o "Frank Kramer", um veterano de aventuras halterofilísticas como SANSÃO (Sansone, Itália/França, 1961) e OS DEZ GLADIADORES (I dieci gladiatori, Itália, 1963), e da série de espionagem KOMMISSAR X, que substituiu o diretor original, Guido Zurli, que brigou com Addobbati.


Nascia o personagem que se tornaria um ícone do western spaghetti: Sartana, o caçador de recompensas. Vestido de negro, chapéu sobre os olhos, cigarrilha entre os lábios, capa preta forrada de vermelho à la Mandrake e com um baralho e uma pistola Derringer de quatro canos escondidos na manga, Sartana era o James Bond do Velho Oeste.


SE ENCONTRAR SARTANA, REZE PELA SUA MORTE (...Se incontri Sartana, prega per la tua morte, Itália/Alemanha/França, 1968) foi lançado na Itália em 1968, no verão escaldante de agosto, quando Roma vira uma cidade fantasma. A estratégia pouco convencional deu certo: barato, o filme virou um fenômeno de bilheteria. O êxito se repetiu no resto da Europa, na Ásia e Oriente Médio. Garko foi elevado ao patamar de 'superstar'. Seu cachê por filme aumentou dez vezes.

Cartaz italiano do filme de Parolini
 
O sucesso gerou um processo contra Addobbati por parte de Mario Siciliano, que reivindicava os direitos sobre o nome do personagem. Ficou a ver navios.

A estreia no Rio ocorreu em março de 1970, com distribuição da River Filmes num circuito encabeçado por duas salas populares - cines Plaza (Passeio) e o gigantesco Olinda (Tijuca) -, além do Hermida (Bangu), Mascote (Méier),  Ricamar (Copacabana) e Mello (Penha Circular).

Sartana ficou sem cavalo e chegou atrasado ao Rio em março de 1970

"Fade".

O retorno do pistoleiro às telas era uma questão de tempo. Addobbati iniciou rapidamente os preparativos para uma sequência. A novidade foi a ausência de Parolini, que brigou com o produtor - a quem chamaria mais tarde de "um cafona ignorante". Levou consigo o roteirista Renato Izzo e assinou com Alberto Grimaldi, responsável pelos filmes de Sergio Leone, para dirigir SABATA, O HOMEM QUE VEIO PARA MATAR (Ehi amico... c'è Sabata, hai chiuso!, Itália, 1969), com Lee Van Cleef no papel título.

Saíam Izzo e Parolini, entravam Tito Carpi e Anthony Ascott.


CONTINUA...




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